Bassam Shadid.

O jantar havia se encerrado com taças erguidas e sorrisos políticos. Os convidados se dispersaram em grupos, como peões buscando seus quadrados no tabuleiro da noite. Os aplausos finais, os abraços ensaiados, as despedidas polidas — tudo seguia o protocolo de uma celebração que jamais foi feita para celebrar. Mas quando as cortinas de seda social se fecharam, os homens reais ficaram.

Haydar e eu nos afastamos do salão principal e seguimos por um corredor silencioso, adornado com tapeçarias antigas e quadros que pareciam nos observar com olhos mudos. Um dos meus homens de confiança já havia inspecionado o local. Seguro. Intocável. Um salão menor, privado, com iluminação baixa e duas poltronas de couro diante de uma lareira que crepitava discretamente. Não precisávamos de pompa ali. Apenas de verdades.

Sentamo-nos com a naturalidade de quem está acostumado ao comando. Haydar retirou um charuto do bolso interno, acendeu com calma, como um padre antes da confissão. Eu aceitei o silêncio inicial. Ele era necessário. Nenhuma guerra começa com pressa.

— A noite correu bem — ele comentou, soltando a fumaça em uma espiral lenta. — Sua presença selou mais do que acordos... intimidou os que ainda duvidavam da força dessa aliança.

Assenti, observando o fogo.

— Eu não vim por cortesia, Haydar. Você sabe disso. Estou cercando o norte da fronteira síria. Alguém anda se intrometendo. Pequenos grupos, financiados por nomes que ninguém ousa pronunciar em voz alta. Mas eu os conheço. Os ratos sempre deixam rastros.

Ele inclinou a cabeça, olhos semicerrados. Aquela expressão de quem não se surpreendia, mas precisava ouvir mais.

— Estão tentando quebrar sua rota?

— Não. Estão tentando me testar. Enviaram um carregamento falso. Interceptamos antes que cruzasse o limite de Jdeideh. Pó adulterado, o tipo que destrói reputação e homens ao mesmo tempo. Se tivesse passado, os portos de Beirute e Trípoli estariam em chamas — respondi, com voz fria.

Haydar tragou o charuto, pensativo.

— Isso não é apenas um teste. É um recado. Alguém quer provocar sua reação. Fazer com que você se mova antes do tempo certo.

— Eu sei. Mas eu não sou o tipo de homem que reage com pressa. Eles esqueceram disso.

Ele sorriu, como quem aprova a resposta.

— Você é uma víbora, Bassam. Silencioso. Calculista. Não morde antes de envolver. É por isso que teme-lo. E é por isso que eu apostei em você.

Aquelas palavras carregavam mais do que admiração. Eram um lembrete. Ele não era um aliado por afeto, e sim por escolha estratégica. E esse tipo de relação exigia respeito mútuo e confiança medida em sangue.

— O que você faria? — perguntei, direto.

Haydar olhou para o fogo por um instante, como se buscasse a resposta nas chamas. Depois falou com voz grave.

— Espere. Deixe que pensem que estão ganhando espaço. Não os ataque ainda. Mova suas peças secundárias, espalhe rumores sobre uma suposta divisão interna. Que pensem que você está enfraquecido. Eles vão baixar a guarda. E então, Bassam, você entra como um raio. Rápido. Mortal. Sem sobreviventes.

Eu sorri de leve. Aquilo não era um conselho — era um espelho. Eu teria feito exatamente o mesmo.

— E quanto à imprensa? Começaram a sugerir que eu estou “cedendo” por causa do noivado. Que quero limpar minha imagem. É uma narrativa conveniente.

— Deixe que pensem. Quanto mais limpo parecer, mais sujo você poderá agir nas sombras. É uma dança, meu amigo. E todos estão assistindo apenas a superfície. O que importa está nos subterrâneos.

Tomamos o silêncio seguinte como confirmação. As palavras ditas não voltariam. E as não ditas eram as mais perigosas. Levantei-me com lentidão, ajeita o paletó como quem veste novamente sua couraça. Haydar apagou o charuto no cinzeiro de pedra e também se ergueu.

— Cuide bem da sua retaguarda, Haydar. Os homens que te abraçam hoje, podem querer o seu sangue amanhã.

— Eu sou um homem velho, Bassam. E velhos como eu... não sangram com facilidade. Mas obrigado pelo aviso.

Apertei a sua mão com firmeza. Ele não era um homem fácil de admirar, mas era impossível ignorar a inteligência cravada em sua alma. Saí daquele salão com mais certezas do que dúvidas. A guerra se aproximava, silenciosa como eu. E quando ela batesse à porta, eu estaria pronto. Não com bandeiras. Mas com lâminas invisíveis e verdades que matam.

Haydar já havia se retirado para lidar com um telefonema que, de longe, eu soube reconhecer como uma movimentação importante, e meus homens aguardavam do lado de fora, atentos como cães de guerra. Caminhei até o núcleo feminino da mesa, e o peso do meu corpo parecia afundar os passos em uma solenidade que se impunha por si só.

Yasmin foi a primeira a se levantar, seu vestido vermelho escorrendo sobre o corpo com confiança e postura. Ela estendeu a mão, firme, os olhos nos meus com uma determinação que parecia dançar entre desafio e respeito.

— Obrigada pela presença, Bassam. Foi... interessante.

O tom não era ácido, tampouco frio. Era maduro, centrado. O tipo de filha que Haydar se orgulhava de apresentar ao mundo. Eu apertei sua mão, assentindo levemente, e notei — naquele segundo específico — quando seu olhar cortou na direção da irmã, e depois voltou a mim com um sorriso enviesado, contido, quase cúmplice. Não havia malícia. Apenas a constatação silenciosa de que ela havia visto o que eu tentava esconder com a austeridade do meu semblante: meus olhos retornavam a Alina sempre que podiam.

Nadira se aproximou com um sorriso gentil e um calor que não parecia fabricado. Era uma mulher de presença calma, mas não apagada. Seu rosto carregava marcas do tempo com dignidade, e a elegância do seu gesto ao me estender a mão era típica de quem conhecia o jogo social por dentro.

— Foi uma honra recebê-lo, Bassam. Espero que volte em breve.

Sua voz tinha aquele timbre suave de quem comanda sem precisar erguer o tom, e eu respondi com um breve toque nos dedos dela e um olhar respeitoso.

— Certamente voltarei, senhora Nadira.

Ela não precisou olhar para trás para perceber que sua enteada nos observava. Limitou-se a sorrir para Alina antes de se afastar com Yasmin, como se soubesse que aquele instante pedia silêncio.

E então, restou ela.

Alina se mantinha próxima à cadeira, os dedos delicadamente trançados diante do corpo, como se o mundo ali fora fosse algo que ela observava com a reserva de quem não se permite invadir nem ser invadida. Mas não havia retração em sua postura — havia um tipo de serenidade que ninguém ensina. Caminhei até ela sem apressar os passos. Quando parei diante do seu corpo pequeno, elegante e intocável, vi seus olhos subirem devagar para os meus. Escuros, vivos, pareciam ouvir melhor do que muitos ouvidos que conheci. A expressão era doce, quase encantada, como se estivesse satisfeita apenas por minha aproximação.

— Foi um prazer conhecê-la esta noite — murmurei, com a voz baixa e controlada, atento aos detalhes da sua reação.

Ela sorriu.

Um sorriso sem pressa, sincero, leve e profundamente educado. Ergueu as mãos e gesticulou em Libras com uma fluidez encantadora. Nadira, a poucos metros de nós, fez questão de traduzir, sem interromper a delicadeza da cena.

— Ela disse que também foi um prazer... e que você parece mais gentil do que aparenta.

Não sorri. Mas deixei escapar um pequeno sopro de ar pelo nariz — a forma mais próxima que meu corpo aceitava expressar surpresa ou divertimento. Alina continuava a me olhar, e naquele breve momento, não havia medo, nem hesitação. Havia apenas algo que eu não sabia nomear, mas que já começava a se entranhar sob a minha pele com uma ousadia silenciosa.

Inclinei a cabeça numa despedida respeitosa, e antes de me afastar, murmurei baixo:

— Boa noite, Alina.

Ela me respondeu com um novo sorriso e um aceno pequeno, como quem guarda o gesto apenas para quem merece vê-lo.

Quando virei as costas e voltei para o frio da noite, com meus homens aguardando e o mundo conspirando como sempre conspirou, levei comigo não a imagem do luxo do jantar, nem o rosto da noiva que me fora apresentada — mas aquele sorriso calmo, delicado e doce, de uma mulher que não disse nenhuma palavra e, mesmo assim, conseguiu atravessar cada camada da minha defesa.

E eu, que construí reinos com sangue, senti — ainda que por um segundo — que havia algo mais perigoso do que qualquer arma: uma mulher que não fala... mas que sabe ser ouvida.

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Comments

Erlete Rodrigues

Erlete Rodrigues

estou curiosa em como eles vão se encontrar novamente

2025-08-05

0

Carla Santos

Carla Santos

Como ele vai desmanchar esse suposto noivado

2025-08-06

0

Ver todos

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