Capítulo 4 — NOITE DE SEGREDOS

                           — DEZIRÊ —

O som dos saltos ecoava na calçada molhada da Rue des Petites-Écuries. A cidade estava úmida, com aquele cheiro de terra, fumaça e perfume barato que só Paris sabia misturar tão bem. Dezirê caminhava com a postura de uma rainha decadente, mas os olhos? Os olhos varriam a escuridão com precisão militar. Nada naquele passo era por acaso. Cada movimento era coreografado. Ela sabia que estava sendo observada.

No reflexo da vitrine da mercearia fechada, ajeitou o chapéu. Não pelo estilo, mas porque alguém acabara de cruzar a rua atrás dela. Um homem? Um sombra? Não importava. O jogo da noite era simples: ou você vigiava, ou era vigiado. E Dezirê não nasceu pra ser presa. Ela se virou em uma rua menor, apertada, e desapareceu entre os becos como uma história mal contada.

Ela puxou um cigarro do maço escondido no cinto da meia e riscou um fósforo contra a parede. A chama revelou os traços tensos de seu rosto. Estava cansada. Não do corpo — isso ela treinara bem —, mas da máscara. Ser Nathalie era simples. Ser Dezirê exigia o tipo de força que esculpe monstros em ossos frágeis. Ela tragou devagar, encarando o vazio da madrugada. O silêncio da cidade dizia mais que qualquer boato.

A lembrança da carta anônima piscou em sua mente: “Ele sabe quem você é.” Três linhas num envelope sem remetente, deixado no portão do prédio onde ela ensinava etiqueta às jovens da alta sociedade. As palavras pareciam gritar agora. Quem sabia? Como? O frio na espinha era antigo, familiar. Era o mesmo de quando criança escutava o pai mentir com elegância nos jantares políticos do sul. A mentira estava no sangue dela — mas o medo também.

"Ça commence," murmurou, apagando o cigarro com a ponta da luva. A noite mal tinha começado. E ela precisava chegar ao cabaré antes da meia-noite.

O cabaré Le Cygne Noir era um segredo mal guardado entre os becos do 10ème. Suas cortinas vermelhas escondiam mais do que pernas e lantejoulas — escondiam pecados de gente rica. Dezirê passou pela entrada de serviço, cumprimentando o porteiro com um aceno breve. “Bonsoir, mademoiselle,” ele sussurrou, desviando os olhos como se tivesse medo de encarar o que ela carregava por dentro.

Nos bastidores, o ar era denso de talco, spray e promessas não cumpridas. As outras garotas a cumprimentaram com acenos rápidos. Havia respeito ali. Mas também medo. Dezirê não era como elas — e todas sabiam. Ela não vendia corpo, vendia presença. E uma presença como a dela, ninguém conseguia comprar. Quando subia no palco para recitar poesia entre um jazz e outro, os homens calavam. E as mulheres... observavam.

Ela foi até o camarim, trancou a porta e sentou em frente ao espelho. Tirou o casaco devagar, revelando o vestido preto justo e os ombros cobertos por renda. Passou batom vermelho com precisão cirúrgica. Uma mulher não precisava dizer nada quando sabia se pintar como uma lembrança inesquecível. No fundo da gaveta, encontrou a pulseira de pérolas falsas — uma cópia barata da que sua mãe usava no Sul. Era ridículo, mas trazia sorte.

Lá fora, a música já começava. O pianista dedilhava as notas de La vie en rose, e a fumaça dos charutos tomava o salão como neblina de pesadelo. Ela ouviu a voz de Margot chamar: “Cinco minutos, Dezirê!”

Respirou fundo. O coração batia no ritmo certo: calculado, contido, perigoso.

Mas do outro lado do salão, alguém já esperava por ela. Um homem de sobretudo escuro, olhar sério, braços cruzados. Charlie não bebia, não sorria, e não tirava os olhos da cortina vermelha. Estava ali a trabalho. Ele queria respostas. Só não sabia que a maior delas estava a poucos passos... maquiada como uma miragem.

A cortina subiu devagar, revelando Dezirê sob a luz difusa e amarelada. Ela caminhou até o centro do palco com a mesma elegância de uma dama entrando num tribunal onde todos já foram condenados. O salão silenciou. Até os talheres pararam no ar. Mas foi o olhar de Charlie que pesou sobre ela — como um julgamento sem direito à defesa.

Ela recitou versos curtos, escritos por ela mesma. Falava de mortes disfarçadas de amores e de promessas sussurradas em travesseiros sujos de sangue. Um arrepio percorreu a espinha de Charlie. Aquilo não era só teatro. Era uma confissão artística, encriptada em poesia. “Essa mulher sabe mais do que diz”, ele pensou, sem tirar os olhos dela nem por um segundo.

Dezirê, claro, o notou. Notava tudo. Era treinada nisso. Desde criança aprendera que um olhar diz mais do que um interrogatório. O dele dizia: "Estou atrás de algo." O dela respondia: "Boa sorte tentando descobrir o quê." Mas no fundo... ela já conhecia aquele tipo. Homens como Charlie apareciam quando os corpos começavam a pesar. E os dela já pesavam há muito tempo.

Ao final da performance, desceu do palco com aplausos contidos. Caminhou com calma entre as mesas, como quem atravessa uma guerra sem se sujar. Charlie se levantou. Ela sabia que ele viria. E, ainda assim, não apressou o passo. Parou diante dele e ofereceu um sorriso preguiçoso, quase insolente.

— Bonsoir, monsieur... — sua voz era doce como veneno em chá de hortelã.

— Investigador Charlies Danton. Posso lhe fazer algumas perguntas? — a resposta veio seca, quase rude.

Ela inclinou a cabeça, como se estivesse avaliando um quadro torto.

— Isso depende... as perguntas vêm com vinho ou só com cara feia mesmo?

Charlie puxou a cadeira com a calma de quem tá acostumado a lidar com mentirosos. Mas o que ele não esperava era encarar uma mulher que mentia com arte.

— Você conhece as vítimas? — ele perguntou direto, sem rodeios.

Dezirê soltou uma risadinha baixa, como quem ouve uma piada interna.

— Monsieur... em Paris todo mundo conhece todo mundo. Mas saber de onde vieram... ça, c’est autre chose.

Ele tirou um bloquinho do bolso e começou a anotar. Caneta tinteiro. Antigo. Como tudo nele. Ela reparou. Ele não era desses detetives desleixados de romance barato. Charlie era metódico. Observador. E acima de tudo... desconfiado.

— Você esteve no Hotel Du Nord na noite do último assassinato? — perguntou, sem levantar os olhos.

— Estive no palco. Entre versos e suspiros. Quer uma testemunha? Tenho trinta bêbados e uma costureira com déficit de atenção.

Charlie finalmente ergueu o olhar. Eles se encararam por longos segundos. Nenhum sorriu. Nenhum piscou.

— Você tem algo a esconder, mademoiselle Dezirê?

Ela se inclinou, sussurrando bem perto do rosto dele, com um perfume carregado de jasmim e aviso:

— Todos temos, monsieur. A diferença é que alguns sabem dançar com isso.

Ele recuou levemente, mas anotou algo. Ela notou. “Anotar” era o novo “duvidar”. E se ele duvidava, ela precisava controlar cada palavra dali em diante. O jogo tinha começado. E Dezirê sabia jogar até de olhos vendados.

Dezirê cruzou as pernas com elegância, como quem fecha uma porta invisível.

Charlie, por outro lado, folheava mentalmente os relatórios. Cada vítima tinha uma ligação com o submundo, mas também com a elite. Banqueiros, senadores, donos de propriedades... e todos tinham passado, em algum momento, por aquele cabaré. E, principalmente, por Dezirê.

— Seu nome aparece demais nas investigações — ele murmurou.

— Culpa da minha mãe — ela rebateu. — Me deu um nome bonito demais. Chama atenção.

Charlie franziu a testa. “Mãe”, ela disse. Mas nos registros... nada. Nenhum parente, nenhuma certidão clara. Aquela mulher era uma esfinge: cheia de curvas, sem respostas.

A garçonete se aproximou, mas antes que falasse, Dezirê ergueu um dedo.

— Deux verres de vin rouge. Bordeaux. De 68, se tiver. — Ela piscou pra garçonete, que saiu sem questionar.

Charlie não gostava de vinho. Mas aceitou. Queria ver até onde ela ia com o teatro.

— Você sempre recebe policiais com vinho?

— Só os interessantes. Os outros eu ignoro ou enveneno. Ainda está inteiro, non?

Ele encostou-se na cadeira, respirando fundo. Ela era perigosa. Não só por esconder coisas, mas porque... fazia ele gostar do jogo. E isso o tornava vulnerável.

— Última pergunta por hoje, mademoiselle... — ele disse, já se levantando.

— Então escolha bem. A última sempre deixa marca.

Ele hesitou. Então soltou:

— Se eu voltasse amanhã... você estaria aqui?

Ela sorriu. Mas foi um sorriso triste. Quase humano.

— Monsieur... em Paris, nem as sombras dormem no mesmo lugar duas noites seguidas.

Charlie saiu do cabaré com a mente pesada. A noite parisiense soprava um vento frio, e as luzes amareladas dos postes projetavam sombras longas como segredos. Ele apertou o sobretudo contra o peito, mas o que doía mesmo era a sensação de que estava sendo conduzido — e não conduzindo.

Enquanto isso, Dezirê subia as escadas dos bastidores. Os aplausos já haviam morrido, mas ela ainda ouvia o eco. Não dos espectadores — mas de vozes antigas. Daquelas que diziam: “Você não é como eles”. Ela se olhou no espelho do camarim. A maquiagem impecável escondia as olheiras. O batom vermelho era a armadura.

— Dezirê... — sussurrou para si mesma. — Você nasceu pra enganar até os deuses.

Ela abriu a gaveta e retirou uma pequena caixa. Dentro, uma carta antiga. Amarelada. Escrita com tinta preta e caligrafia firme. Era de um dos mortos. Um dos que agora fazia parte do caso que Charlie investigava.

— Se eles soubessem o que você sabia... você já estaria morta, Nathalie — disse, como se conversasse com o reflexo.

Do lado de fora, alguém observava. Uma figura parada do outro lado da rua, entre as sombras. Charlie voltara, mas dessa vez não entrou. Apenas observava.

Ela riu, sem que ele visse. Era isso que ele não entendia: não se espiona quem já está esperando ser observado.

No fundo, ela sabia: o jogo entre eles estava só começando. E quanto mais ele investigasse, mais se enredaria. Porque aquele mundo... aquele submundo de sangue, glamour e segredos... pertencia a ela.

No fundo da caixa, entre cartas e relíquias, Dezirê encontrou um broche antigo. Era de ouro branco, com um brasão que só a nobreza do sul reconheceria.

Ela o girou nos dedos, como quem gira uma arma.

— Quantos mais precisarão morrer pra que a verdade não seja descoberta? — sussurrou, quase como um lamento.

O rosto dela ficou sério. O passado pesava, mas nunca a quebrava. Desde o funeral da mãe — onde jurou silêncio — até a noite em que o pai a trancou para que nunca mais fosse vista como Nathalie.

Mas ela escapou. E agora... era livre.

Livre o bastante para jogar o jogo que os outros criaram. E perigosa o bastante pra vencer.

Enquanto isso, Charlie folheava o dossiê no apartamento de paredes úmidas.

O nome dela surgia entre os relatórios, entrelaçado com nomes que estavam seis palmos abaixo da terra.

— Todos eles tinham ligação com a resistência... ou com a monarquia sulista... — murmurou, ligando os pontos. — Mas Dezirê? Ela aparece como uma sombra. Sempre ali, mas nunca clara.

Ele acendeu um cigarro, frustrado.

Nada encaixava. Nenhuma ficha criminal, nenhum rastro digital. Era como se Dezirê tivesse nascido no cabaré. Ou... como se ela tivesse enterrado quem era antes de chegar lá.

— Quem diabos é você? — perguntou ao vazio.

E o vazio respondeu com silêncio. Porque só as paredes sabiam... e elas não eram de confiar.

No corredor estreito atrás do palco, Dezirê parou diante de uma porta trancada. Tirou uma chave de dentro do salto. Sim, do salto. Porque princesa do sul aprende cedo que as armas precisam estar nos lugares mais improváveis.

Ao abrir, revelou um pequeno quarto. Não era camarim. Era um santuário. Fotografias antigas, mapas de Paris, recortes de jornais e nomes riscados em tinta vermelha.

— Cada um desses... tocou fogo no que restava da minha linhagem — sussurrou, os olhos brilhando.

No centro do quarto, um espelho grande, com moldura dourada. Atrás dele, escondido, um cofre.

Digitou a combinação: 1658. O ano em que o brasão da família foi oficialmente exilado da coroa francesa.

Dentro, havia dinheiro, passaportes falsos, e um diário. O diário da mãe dela.

— "Minha filha deve ser a sombra e o raio. O silêncio e o estrondo." — leu, em voz baixa. As palavras que guiavam sua vida.

Enquanto isso, do outro lado da cidade, Charlie voltava ao QG da polícia. Jogou as anotações sobre a mesa e chamou o parceiro.

— Preciso de tudo que conseguimos sobre Nathalie de Bon Juor.

O outro o olhou, confuso.

— Nathalie? Pensei que estivesse focado na Dezirê.

— Tô. Mas meu instinto diz que tem uma mulher desaparecida nesse quebra-cabeça. E talvez... talvez seja a peça que falta.

A coincidência soava alta. E Charlie não era homem de ignorar coincidências.

Mas Dezirê era uma profissional em transformar coincidência em cortina de fumaça.

E se ele começasse a cavar fundo demais... bom, poderia acabar achando um cadáver — ou pior, uma verdade que ele não saberia lidar.

A calçada em frente ao cabaré estava quase vazia. Os últimos bêbados cambaleavam de volta pros becos, e as luzes da fachada tremeluziam como um coração prestes a parar. Dezirê saiu pela porta lateral, casaco de veludo escuro e luvas de couro. O salto ressoou como estalo de chicote no silêncio da madrugada.

Charlie encostava na parede do outro lado da rua, braços cruzados.

Ela o viu. Claro que viu.

Mas fingiu surpresa.

— Monsieur... sempre tão pontual — disse, com um leve sorriso nos lábios.

— Ou talvez você esteja sempre atrasada pra explicar o que tá acontecendo — rebateu ele, sem humor.

Ela atravessou a rua com a elegância de quem flutua sobre os próprios crimes.

— Não sabia que a polícia agora se interessava por artistas da noite.

— Só os que aparecem nas investigações de assassinato — respondeu, mostrando uma foto de um dos corpos.

Dezirê olhou para a imagem. Franziu a testa por dois segundos. Não de choque — mas de cálculo.

— Que trágico... Paris está mesmo perdendo sua poesia — murmurou, devolvendo a foto.

— Você conhecia ele. Tava no mesmo evento.

— Paris é uma cidade pequena para quem tem olhos abertos... e uma cidade perigosa para quem fecha os deles — disse, encarando-o nos olhos.

Os dois ficaram em silêncio por longos segundos. A tensão no ar era densa, feita de não-ditos.

Charlie sabia que ela escondia algo. Mas ainda não sabia o quê. E Dezirê... ela sabia de tudo. Inclusive que aquele seria só o primeiro de muitos encontros.

O vento noturno passou por eles como um sussurro antigo. Paris tinha dessas coisas — até o ar parecia guardar segredos.

Charlie guardou a foto no bolso do sobretudo, mas os olhos seguiam colados nela.

— Não é só coincidência. Você tá sempre perto quando alguém morre.

— E você tá sempre atrás de um rosto pra culpar — disse ela, com aquele sorriso tranquilo que mais parecia um tapa de veludo.

Ele deu um passo à frente, a voz mais baixa.

— Você sabe quem é Nathalie de Bon Juor?

Ela arqueou uma sobrancelha, fingindo surpresa.

— A princesinha do sul? Claro. Tá em todos os jornais. Por quê? Vai investigar também os jantares beneficentes agora?

Charlie não respondeu. Estava testando. Jogando verde pra colher podre. Mas algo na expressão dela... um leve endurecimento no olhar. Rápido, sutil.

Era como se, por um segundo, a máscara tivesse trincado.

Ela se virou, os passos elegantes se afastando na calçada úmida. Charlie puxou o caderno, anotou com pressa: Nathalie de Bon Juor ↔ Dezirê?

Mesmo círculo. Mesmo tipo de olhar. Algo não bate.

Ainda não tinha provas. Mas tinha o instinto.

E se tinha algo que o instinto dele gritava naquela noite era: Elas são a mesma mulher. Ou são cúmplices de algo bem maior.

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