— NATHALIE —
O rádio chiava perto da janela, tentando sobreviver à estática da manhã. Piaf cantava algo sobre corações partidos, e o cheiro de café fresco misturava-se com o perfume antigo das cortinas, lavadas com lavanda na primavera passada.
Nathalie sentou-se à penteadeira, os dedos longos deslizando sobre a escova de prata. Os cabelos castanho-escuros estavam soltos, ondulados como as ruas molhadas de Montmartre. A bruma deixava Paris em tom de despedida constante — uma cidade que nunca dizia “adeus”, só “até logo”.
Vestia um robe azul-claro com bordados manuais nas mangas. “Bon matin, ma demoiselle,” sussurrou a criada ao trazer o chá. Nathalie assentiu com um gesto leve. Palavras eram poucas nas manhãs. Ela preferia os silêncios. Desde que a mãe morreu — há tantos anos que já parecia um sonho torto — o mundo inteiro se tornara mais quieto.
Na sala de estar, o relógio de parede marcava 07:46. O pai, sempre pontual, já havia saído para o Palais du Sénat, onde cumpria obrigações cerimoniais. Ainda usava bengala, apesar de não precisar mais. Gostava da postura. Era arquiduque, afinal.
Nathalie não sabia muito sobre a mãe. Uma princesa do sul, daquelas que encantavam salões mas morriam cedo demais. Ficaram alguns retratos, alguns vestidos guardados em caixas com cheiro de mofo e rosas secas. E uma pulseira de ouro, agora em seu pulso fino.
Abriu a varanda. A cidade pulsava. O vendedor de croissants discutia com uma senhora sobre o troco; crianças riam, correndo entre pombos; um soldado passava com pressa, olhando o relógio. Paris real, viva, sem máscaras.
— Votre jupe... está torta, mademoiselle. — avisou Rosélie, tímida, ajeitando o tecido plissado da saia.
— Merci, Rosélie. — disse Nathalie, sorrindo de leve. — Hoje o vento decidiu brincar.
Prendeu o cabelo num coque frouxo. Blusa de gola alta, casaco de lã, sapatos engraxados. Elegância natural, herdada. Princesa por sangue. Sozinha por destino.
Desceu os degraus do casarão com passos leves. O guarda-chuva preto balançava em sua mão esquerda. Na outra, um pequeno caderno. Observava tudo: o mendigo dormindo num banco, a mulher limpando a vitrine, os olhos desconfiados de um policial parado na esquina.
No Marché aux Fleurs, o cheiro de terra molhada e flores invadia o ar. Nathalie amava aquele lugar. Gente simples, vozes reais. Um músico tocava acordeão, desafinado mas feliz. Um jornaleiro gritava manchetes: "Corpo de socialite é encontrado no Sena — polícia investiga desaparecimento anterior."
— Sua rosa branca, mademoiselle? — perguntou o florista, como fazia sempre.
Ela hesitou. Os olhos bateram na manchete. Algo latejou por dentro.
— Hoje... vermelha.
O homem a entregou com delicadeza. A flor parecia mais viva do que o próprio dia.
No caminho de volta, o céu escureceu de leve. Uma mulher, parada na calçada, a encarou. Um olhar estranho. Familiar, talvez. Nathalie desviou os olhos. Sentiu o peito apertar. Aquilo era só Paris… ou era algo mais?
Entrou em casa sem dizer palavra. Subiu direto para o quarto. Sentou-se à escrivaninha, abriu o caderno, e escreveu:
"Às vezes, o mundo inteiro cabe num silêncio que ninguém ouve."
Lá fora, o rádio chia. Piaf se calou. E Paris… continuava fingindo não ver nada.
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Atualizado até capítulo 24
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