Capítulo 3 — O PASSADO ESQUECIDO

                         — AURORA —

Acordei com o barulho da chaleira no fogão à lenha. O som se arrastava pela casa grande como um aviso. Meu quarto era frio, mesmo com as janelas fechadas. A criadagem sussurrava nos corredores, como se temessem dizer meu nome em voz alta.

Sempre gostei disso. Do medo quieto.

Me levantei devagar, pisando nas tábuas com o cuidado de quem nasceu observando. A casa, no norte da França, era repleta de quadros religiosos e relógios que pareciam rir de mim. Eu sabia que aquela família não era como as outras. Meu pai dizia que o Sul sorria demais… e quem sorri demais, mente.

Naquele dia, eu sentia o cheiro de mudança. Tinha seis anos, mas meu corpo já sabia farejar o que vinha com o vento. A guerra não tinha terminado — só se camuflado. Lá fora, soldados marchavam, homens sumiam e mulheres choravam baixo. A França inteira sangrava por dentro.

Enquanto escovava o cabelo diante do espelho, olhei para mim com frieza. Não havia criança ali. Só uma menina que aprendera cedo que sentimentos eram ruído. E ruído atrapalhava. Uma dama nunca deixava rastros, dizia maman. Eu obedecia.

Sempre obedeci.

— Aurora, mademoiselle... chegou correspondência do Sul. — disse Geneviève, a criada.

Meu estômago revirou. Eu já sabia o que viria.

Os Bon Juor. Sempre os Bon Juor. Famílias do Sul e do Norte fingiam alianças. Não por afeto, mas por aparência. Era tudo uma dança. Sorrisos falsos, apertos de mãos frios, vestidos elegantes por cima de trégua política. Eu já sabia dançar. E odiava a música.

Lembro da primeira vez que vi ela. Nathalie. Um nome delicado demais para um incômodo tão profundo. Ela chegou com os cabelos perfeitamente penteados, um laço azul no alto da cabeça e olhos que tentavam parecer humildes. Ridículo. Ela sabia que era uma princesa. E eu sabia que não a suportaria.

— Que bonitinha! — alguém disse, ao ver Nathalie descer da carruagem.

Bonitinha. Detestei essa palavra ali. Soava como rendição. Como se alguém estivesse prestes a dar poder demais a uma estranha.

Meu pai apertou o braço da minha mãe. Era sutil, mas eu vi. Ela sorriu por obrigação e se inclinou para cumprimentar a princesa do sul. Era isso. Estávamos virando palco. E eu não queria ser coadjuvante.

— Aurora, apresente-se à jovem. — disseram.

— Prazer. — falei, seca. — Espero que goste de dias nublados.

Ela sorriu. Maldita.

Nos dias que se seguiram, fingimos amizade. Como nos ensinaram. Eu mostrava os jardins, ela me elogiava os vestidos. Um teatro em três atos: graciosidade, contenção e sorrisos entalados. Só que Nathalie era boa demais nisso. E eu... não estava acostumada a perder.

Um dia, ela apareceu na biblioteca e pegou meu livro favorito. Sem pedir. Era sobre segredos de realeza, espionagem e táticas de guerra.

— Você entende isso? — ela perguntou.

— Mais do que você imagina. — respondi, pegando o livro de volta.

Ela riu. De leve. Como se duvidasse.

Aquilo acendeu algo dentro de mim. Não era inveja. Era… alerta. Nathalie não era apenas uma princesa mimada. Ela era observadora. Perigosa, mesmo sem saber. Um brinquedo bonito, mas feito com lâminas escondidas.

E eu estava ali, afiada como sempre. Mas pela primeira vez, entendi que podia me cortar.

— Você gosta de jogos, Nathalie? — perguntei.

— Depende do prêmio. — ela respondeu.

Filha da rainha.

Enquanto as mães discutiam vestidos e os pais política, a guerra moldava nossas casas. Os mapas mudavam a cada semana. Às vezes faltava pão. Outras, faltava coragem. Mas o que nunca faltava era o silêncio nos olhos dos adultos. Eu assistia tudo, quieta, aprendendo a engolir o medo.

Nathalie, por outro lado, parecia viver num mundo onde a guerra era um sussurro distante. Ela dançava, costurava e tomava chá com as damas do sul como se o mundo não estivesse despedaçado. Aquilo me enojava. Como alguém podia ser tão leve em tempos tão pesados?

— Meu pai diz que o sofrimento também ensina. — ela me disse, num fim de tarde.

— Então ele deve ser um ótimo professor. — respondi.

Mas mesmo com a ironia, havia algo ali que me escapava. Nathalie não era cega. Ela via tudo. Sentia tudo. Só não deixava transparecer. E isso… me desarmava.

Era como lutar contra um espelho que nunca rachava.

Perfeitooo, mana! Agora o quebra-cabeça tá ficando de outro nível: Aurora, a bastarda indesejada, criada no Norte com requintes de frieza, sobrevivente entre irmãos mortos, moldada como arma — e vendo em Nathalie o reflexo daquilo que nunca lhe foi permitido ser. Um doce com veneno, uma flor criada no sal.

Eu não nasci ali. Isso nunca foi segredo. Fui adotada pela realeza do Norte após a morte de uma das rainhas consortes. Um favor político, diziam. Um ato de caridade. A verdade é que fui plantada ali como semente de silêncio. Bastarda. Título que não se diz, mas se sente.

Tive oito irmãos adotivos. Oito. E um a um, caíram. Doença, acidentes, guerra. Um sumiu no mar, outro levou um tiro em Lyon. Um caiu do cavalo e quebrou o pescoço. Cada vez que um morria, a casa ficava mais gelada. E eu… continuava de pé. Inexplicável. Intocada.

Começaram a me olhar com desconfiança. Como se eu tivesse culpa por sobreviver. E talvez eu tivesse. Nunca chorei por nenhum deles. Só observava. Eles me chamavam de “a sombra que resta”. Eu respondia com reverência e olhos baixos. Por fora.

Por dentro, eu aprendia a engolir o desprezo. A comer veneno com colher de prata. A sorrir quando me moldavam para eventos, discursos, sorrisos obrigatórios. Eu era o que restava — então que eu fosse útil. A filha de ninguém com propósito de rainha descartável.

— Nunca se esqueça do que é, Aurora. — dizia a duquesa.

— Eu não esqueço. Eu só disfarço melhor que vocês.

Nathalie era tudo o que eu nunca fui. A filha legítima. A menina querida. Crescida no Sul, entre videiras, canções e lavandas. Falava com doçura, movia-se com leveza, mesmo em meio ao caos. Era como se a guerra não ousasse sujá-la. Como se os anjos a protegessem.

Meu pai olhava para ela com respeito. E eu via. Eu via tudo. O modo como os olhares se fixavam em Nathalie nos bailes, nas visitas, nos jantares forçados. Como as mulheres a invejavam e os homens a exaltavam. Era um brilho estranho, que me cegava.

— Aurora, sente-se ereta. — diziam.

— Aurora, sorria como a princesa do Sul.

Até meu nome parecia ecoar em função dela.

Mas eu sabia fingir. Sabia sorrir igual. Falar igual. Ser igual, se quisesse. Só que por dentro… eu carregava outra coisa. Eu não queria ser como Nathalie. Eu queria ser o que ela escondia. Aquela sombra por trás do sorriso perfeito.

— Ela tem medo de mim. — sussurrei certa noite ao meu espelho.

E era verdade. Medo do que eu podia ver nela.

Houve um jantar em 1943. Lembro como se fosse ontem. O salão cheio, velas tremendo, perfume de vinho, conversa sobre territórios ocupados e aliados falsos. Nathalie usava branco. Eu, vinho escuro. Sentaram-nos lado a lado — como se fossem unir gelo e fogo.

— Está gostando da estadia? — ela me perguntou, com sorriso educado.

— Como se gosta de uma cela bem decorada. — respondi.

Ela não respondeu. Apenas bebeu mais um gole de vinho. Ali, entendi que ela sabia jogar. Não era só pose. Ela escondia veneno atrás do batom rosado. E isso... me excitava. Pela primeira vez, vi nela um adversário digno. Não uma rival. Um reflexo.

Enquanto os adultos falavam de alianças, ela me lançou um olhar firme. Longo. A guerra lá fora era barulhenta. A nossa era silenciosa. Um jogo que nenhuma das duas admitiria jogar… mas ambas sabíamos que estávamos no tabuleiro.

— Você se veste como se quisesse ser notada. — ela disse.

— E você como se quisesse desaparecer. Mas falha miseravelmente.

Com o tempo, percebi que ela também carregava ausências. A mãe que acabou falececendo. A presença rígida do pai. Os olhos que pareciam buscar algo que não estava ali. Éramos diferentes... mas quebradas do mesmo jeito.

Isso me enfurecia. Eu não queria conexão. Queria distância.

Em uma tarde chuvosa, nos esconderam no sótão durante um bombardeio. A casa tremia. As criadas gritavam. E nós… em silêncio. Ela tremia de frio, sentada perto da janela. Me aproximei sem dizer nada. Por um instante, quase senti pena.

— Você acha que vamos morrer? — ela perguntou.

— Só os que têm algo a perder. — respondi.

Ela sorriu. Tinha gosto de adeus aquele momento.

No escuro, toquei sua mão por um segundo. Não por afeto. Por confirmação. Ela era real. De carne, osso… e rachaduras. Uma rainha em construção. E eu? Uma pedra esculpida por tragédias. Incompatíveis. Irreversíveis.

O verão seguinte foi o último em que nos vimos na infância. Os conflitos entre as casas cresceram. Disfarçados de diplomacia, os encontros tornaram-se raros. Nathalie voltou ao Sul. Eu fiquei aqui, com os fantasmas do Norte.

Mas ela nunca saiu da minha cabeça. Era como uma música que você odeia mas canta sem querer. A lembrança dela me envenenava e, ao mesmo tempo, me deixava alerta. Nunca confiei em quem consegue sorrir com tanta perfeição.

Naquele último dia, antes da partida, ela me deu um lenço bordado com nossas iniciais.

— Para lembrarmos que tudo pode mudar. — disse.

Guardei o lenço. Não pelo carinho. Mas pelo símbolo. Era um aviso.

De que ela também sabia. Sabia que nosso jogo não tinha terminado. Só pausado.

Afinal, o passado... nunca esquece. Só espera.

Hoje, sentada nesta poltrona velha, escuto as vozes do salão e me finjo de nobre. Ainda o faço com perfeição. As guerras mudaram de nome, mas o jogo é o mesmo. Nathalie... voltou para a mesa.

E eu estou esperando.

As pessoas acham que a vilania nasce de um ato brutal. Não. Ela nasce no silêncio. Nas pequenas rejeições. Nos olhares desviados. Nos segredos compartilhados com quem não se ama. Eu fui moldada por tudo isso. E agora sou a herança viva de uma guerra mal enterrada.

Ela brilha. Eu observo. Ela sorri. Eu arquivo.

Ela vence... por enquanto.

Mas em todo tabuleiro, há um bispo esquecido. Silencioso. E eu? Eu nunca esqueci o passado.

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Comments

Any

Any

já sei que vou odiar essa Aurora.🐍

2025-07-25

1

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