O cheiro da mentira vem antes do sangue
O mar Egeu se estendia além das janelas panorâmicas da suíte.
As ondas batiam com regularidade, como um relógio antigo, marcando a contagem de uma vida prestes a terminar.
Ryder permanecia de pé, imóvel, à frente de seu terminal.
O sistema portátil estava montado com perfeição: estrutura reduzida, móvel, mas capaz de rastrear qualquer indivíduo em qualquer lugar do mundo.
Ainda em Mykonos, ele não havia aceitado o contrato — apenas ouvira a proposta, observara o comportamento de Astraea Vasiles, e recuaram para o que fazia de melhor: analisar, identificar, julgar.
As informações preliminares da mulher não o convenceram.
Havia algo naquela mulher que seus olhos não conseguiam ignorar.
Ela não era fria — ela era vazia.
E para Ryder, pessoas vazias escondem cadáveres em pé.
A comunicação encriptada piscou na tela.
Tanásio.
“O que deseja?”, perguntou a voz metálica do outro lado da linha segura.
— Preciso de um levantamento completo sobre Astraea Males Vasiles.
Ascendência, registros médicos, conjugais, irmãos, histórico hospitalar.
Tudo.
— Isso vai exigir profundidade.
— Tenho tempo.
— Um dia.
— Você terá doze horas.
— Considerarei uma agressão.
A linha caiu.
E Ryder sorriu.
Tanásio sempre reclamavam — e sempre entregava antes do prazo.
Enquanto isso, ele ativou seu próprio módulo de varredura.
Seu instinto dizia que a mulher não era quem afirmava ser — e seus instintos nunca falharam.
Digitou: “Stephanos Vasiles – Registros corporativos”
O sistema apresentou em poucos segundos uma ficha empresarial detalhada:
Diretor executivo de uma empresa multinacional de logística marítima, com base fiscal em Atenas.
Presença discreta.
Reputação limpa.
Ryder aprofundou a busca.
Linhagem familiar.
Pai: Alejandro Vasiles.
Mãe declarada: Astraea Males Vasiles.
Irmão: Alexander Vasiles – sócio.
— Gêmeos — sussurrou Ryder, fitando o visor.
As imagens não deixavam dúvidas.
Idênticos. Mesmo ano, mesmo dia.
Registros consistentes, sem sinais de manipulação digital.
E então veio a pergunta.
Aquela que marcou o ponto de virada.
“Se existem dois irmãos,
por que ela quer eliminar apenas Stephanos?”
As mãos de Ryder se fecharam lentamente sobre o apoio da cadeira.
“Alexander não representa ameaça?
Ou Stephanos descobriu algo?
Ou pior ele está prestes a falar?”
Voltou ao arquivo inicial da solicitante.
Perfil psicológico.
Análise comportamental.
Nada ali parecia natural.
“Ela mente com os olhos”, pensou. “E mente como quem respira.”
Nada em sua expressão demonstrava repulsa ao ato que encomendava.
Nenhum sinal de hesitação, culpa ou falsa justificativa moral.
Apenas objetivo.
Eliminar.
Sumir.
Encerrar.
Mas se havia dois filhos
por que matar apenas um?
“Se há dois irmãos por que ela quer eliminar apenas um?”
“Stephanos descobriu algo?”
“Ou ela está a tentar silenciar o único obstáculo?”
A resposta não estava nos documentos.
Ainda.
Seis horas depois, o alerta do terminal soou.
Thanásio: Dados iniciais coletados.
O arquivo chegou comprimido.
Criptografia de múltiplas camadas.
Ryder descodificou em menos de dois minutos.
E então o nome apareceu.
Rhea Males.
Irmã gêmea de Astraea.
Desaparecida há vinte anos.
Último registro: acompanhante hospitalar no parto de gêmeos.
Sumiu no mesmo dia em que Astraea “deu à luz”.
Ryder leu três vezes.
Confirmou o nome, a data, o local:
Hospital Geral de Santorini.
Data: 22 de abril.
Registro: Parto de gêmeos masculinos.
Mãe: Astraea Males Vasiles.
Acompanhante registrada: Rhea Males.
E depois…
nada.
Rhea desapareceu.
Sem atestado de óbito.
Sem saída oficial.
Sem sinal.
Continuou a leitura.
Os pais das gêmeas, Nikolaos e Eurydice Males, morreram dois meses depois em um acidente automobilístico.
Veículo destruído.
Queimado.
Sem testemunhas.
O dossiê incluía ainda descrições comportamentais:
Rhea: social, expansiva, presença constante em eventos.
Astraea: reservada, doméstica, casou-se aos 17 anos com Alejandro Vasiles.
Ryder se recostou na cadeira.
Estava claro como a lâmina de sua faca preferida.
A mulher que o contratara mentia.
E não era apenas sobre o alvo.
Era sobre sua vida.
Ele não tinha provas.
Mas tinha algo melhor:
instinto.
E o instinto nunca falhava.
Desligou o sistema e caminhou até a janela.
Lá fora, a noite sobre Mykonos brilhava com a falsa tranquilidade dos ricos.
Mas dentro daquela mente, o predador já havia identificado sua presa.
— Se Stephanos for inocente, ele viverá.
Se Astraea for uma mentirosa
ela será a próxima na lista.
Voltou ao terminal e digitou uma nova linha de rastreamento:
“Rastrear movimentações físicas de Stephanos Vasiles nos últimos 30 dias.”
“Verificar locais, contatos, reuniões, sistemas de segurança.”
E enquanto aguardava, olhou para o relógio.
04h37.
À mesma hora da última ligação com sua esposa.
Fechou os olhos.
Respirou fundo.
E murmurou:
— Tic-Tac, Astraea.
O tempo está contra você.
Verdades apagadas
O visor brilhava suavemente no escuro do quarto.
Era madrugada em Mykonos. O hotel estava em silêncio, mas a mente de Ryder girava como os servidores criptografados que zumbiam discretamente ao lado de sua maleta aberta.
O relatório de Thanásio estava completo, mas não encerrava nada.
Pelo contrário, abria ainda mais perguntas.
A primeira delas era simples — e urgente:
— O que aconteceu com Rhea Males?
A irmã desaparecida era uma sombra em cada linha dos arquivos.
Constava como acompanhante no hospital onde os gêmeos nasceram, vinte anos antes.
A entrada foi registrada. A saída jamais.
Digitou diretamente no terminal:
“Rhea Males – rastreio mundial, nos últimos 20 anos.”
Nenhuma atividade bancária. Nenhuma atualização civil. Nenhum passaporte.
Era como se, após o parto dos filhos de Astraea, ela tivesse sido engolida pela terra.
Ryder não acreditava em coincidências.
E sabia, por experiência, que ninguém some assim sem ajuda.
Ou sem eliminação.
Se Rhea tivesse partido voluntariamente, ao menos um registro informal deveria existir.
Mas a irmã que era sociável, ativa, conectada com a elite grega… havia sumido no momento exato em que os filhos nasceram.
E nunca mais foi vista.
Não bastava.
Ele foi até a linha do tempo dos pais das gêmeas: Nikolaos e Eurydice Males.
Segundo os registros, os dois morreram dois meses após o nascimento dos gêmeos, em um acidente de carro em uma estrada montanhosa.
Colisão frontal. Veículo em chamas. Nenhum sobrevivente.
— Conveniente demais. — murmurou.
Rhea desaparece no dia do parto.
Os pais morrem dois meses depois.
E Astraea se isola com os gêmeos, já declarando-se mãe única.
Ainda com o sistema ativo, Ryder solicitou acesso à planta baixa do hospital de Santorini da época do parto.
Thanásio foram enviados em minutos.
Era uma estrutura relativamente simples: entrada principal, ala cirúrgica, sala de pré-parto, observação, e ala administrativa.
Nos registros médicos de Rea, a última anotação era:
Presente como acompanhante durante trabalho de parto da irmã gêmea.
Reagiu com náuseas e pressão baixa. Foi conduzida a uma ala reservada para repouso.
Após esse momento, não há registros adicionais.”
Nada sobre alta.
Nada sobre transferência.
E ninguém pareceu ter notado.
Ou questionado.
Ou registrado uma investigação.
O cursor de Ryder piscava como um aviso.
Ele digitou uma nova pergunta, seca e direta:
“Foi Rhea Males apagada?
Ou foi substituída?”
A mente dele trabalhava como um algoritmo de guerra.
Havia agora três possibilidades em jogo:
Rhea desapareceu espontaneamente — improvável.
Astrea foi assassinada? — mais provável.
Astrea foi eliminada para que Rhea tomasse seu lugar — a hipótese mais coerente.
Se Astraea fosse, na verdade, Rhea, tudo mudava?
O pedido de assassinato contra Stephanos assumiria um novo significado.
— “Eliminação de ameaça biológica.” — sussurrou Ryder.
Porque se Stephanos desconfiava da verdade.
se ele soubesse que a mulher que o criou não era sua mãe,
mas sua tia,
então o risco de herança, identidade, poder e vingança crescia exponencialmente.
Ryder ativou um comando de busca cruzada.
“Stephanos Vasiles – últimas movimentações públicas e privadas.
Imagens, encontros, sinais de segurança reforçada.
Possíveis ameaças ou conflitos recentes.”
Demorou três minutos.
As imagens começaram a aparecer.
Stephanos havia sido fotografado em uma reunião discreta em um café de Atenas.
Quatro dias atrás.
Com quem?
Um advogado internacional especializado em testamentos e direitos sucessórios.
Um segundo alerta surgiu:
dois dias antes, Stephanos teve um encontro confidencial com uma mulher não identificada em Atenas.
Imagem parcial. Sem nome.
Mas o rosto, mesmo embaçado, parecia conhecido.
Traços femininos, jovens, olhos escuros. Rosto forte. Postura vigilante.
— Isso está crescendo rápido demais. — sussurrou Ryder.
Ele conectou as informações e começou a montar o mapa de suspeitas.
Linhas entre os nomes.
Datas.
Movimentações.
Stephanos estava buscando algo.
Talvez a verdade.
Talvez proteção.
Ou talvez provas.
E Ryder precisava decidir rápido se continuaria como executor ou como protetor.
Ele já sabia qual seria a escolha.
Mas ainda precisava de uma última confirmação.
Retornou ao terminal e digitou uma nova instrução para Thanásio:
“Investigar:
Relações de Stephanos com Alexander.
Alterações recentes em testamentos da família Vasiles.
Movimentações financeiras de Astraea nos últimos 3 meses.”
Confirmou o envio.
Encerraria as operações naquela madrugada.
Mas antes, olhou mais uma vez para a tela escura.
“O que você fez com sua irmã, Astraea?
E o que mais está tentando esconder?”
Fechou o visor.
Sentou-se à beira da cama.
Passou as mãos no rosto.
Estava claro:
alguém seria eliminado.
Mas não sem julgamento.
E se Stephanos fosse, de fato, o único herdeiro legítimo da verdade…
então Astraea estava à beira do abismo.
E ele era o abismo.
Tic-Tac.
Silêncio nos Arquivos da Maternidade
Grécia.
Um vilarejo esquecido pelo tempo, onde o mar encontrava as pedras com violência e os telhados vermelhos pareciam esconder segredos antigos.
Ryder parou diante da pequena casa rústica, cercada por oliveiras e um silêncio estranho demais para quem um dia viveu no centro de um hospital.
Na placa de madeira gasta lia-se: “Propriedade de – Não Perturbe”.
Ele tocou a campainha uma vez.
Nada.
Duas vezes.
Só então uma cortina se moveu.
Aos 78 anos, ex-enfermeiro de um dos hospitais particulares mais caros da Grécia, não parecia surpreso ao ver um homem como Ryder ali.
— Já demorou demais para alguém aparecer.
— Entre. Mas se essa visita for o que eu penso.
— Prefiro ser morto por palavras do que por faca nas costas.
Ryder se sentou, observando as mãos ainda firmes do idoso.
O Enfermeiro serviu café, mas não bebeu.
— Então ela está viva. A Rhea Males.
— Está. E se apresenta como Astrea Vasilis.
O velho soltou um riso seco.
— Sempre soube que ela ia fazer isso.
— Ela não nasceu para ser sombra. Ela queria ser tudo. Sempre quis.
Ryder puxou um gravador.
Mas o enfermeiro o deteve com um gesto.
— Escute, senhor Ryder. Eu não estou aqui para dar entrevista.
— Se eu falar é porque preciso tirar isso do peito. Antes de morrer.
E ele começou.
— Aquela noite, a da maternidade, foi o começo do fim.
A médica, doutora, minha amiga de longa data, me entregou uma seringa para eu aplicar uma dosagem absurdamente alta de sedativo em Astreia.
Disse que era por segurança, que a paciente estava instável. Ela disse isso para o pediatra não suspeitar.
Mas eu não sou burro.
Eu sabia o que aquela dosagem fazia.
— Causaria parada respiratória.
Ryder não disse nada.
Deixou o homem afundar na própria memória.
— Quando fui confrontar a doutora, Rhea já estava na sala.
Vestida como enfermeira.
Mas ela não fazia parte da equipe.
— Era uma armadilha.
— Astreia seria apagada naquela noite e Rhea assumiria tudo.
Ryder franziu o cenho.
— E o senhor não chamou a polícia?
— Eu sabia que não daria tempo.
Então fiz o que achei certo.
— Tirei Astreia da sala.
Ela estava fraca desacordada, havia dado à luz gêmeos de parto normal há menos de uma horas, eu a sedei, limpei e fingi que ia leva- lá para finalizar o trabalho. Estava inconsciente.
Rhea e a médica se distraíram por um instante, discutindo.
Eu levei Astreia pelos fundos.
Minha amiga, enfermeira aposentada chamada Cecilia, estava de férias aqui, na Grécia.
Era brasileira, morava em um capital no Nordeste do país.
— Entreguei o dinheiro que tinha. E mais: entreguei todo o dinheiro da propina que eu deveria receber pelo silêncio.
Ryder o encarou.
— A senhora Astreia aceitou?
O Enfermeiro sorriu com pesar.
— Não. Ela recusou quase tudo. Disse que só pegaria o necessário pra viajar.
Ela só queria proteger os filhos.
— Mas os filhos ficaram?
— Sim, Rhea os registrou como se fossem dela com nome de Astrea.
A doutora estava comprada.
O sistema é alterado.
Os nomes trocados.
O plano era perfeito.
Quase.
— A minha amiga enfermeira partiu naquela mesma noite com documentos falsos.
Levou Astreia para o Brasil.
— Para qual cidade?
— Isso eu não sei dizer com certeza.
Sei apenas que ela mencionou interior do Rio Grande do Norte.
Santa Cruz, Caicó,ou Natal algo assim.
Ryder anotava mentalmente.
— E depois disso?
— Eu me escondi.
Comprei essa propriedade, larguei tudo, tirei minha família da cidade.
Porque sabia o que viria a seguir.
— E veio.
Dois meses depois do parto, os pais das gêmeas morreram queimados num carro.
Cinco meses depois do parto, a doutora morreu num “acidente”.
Explosão. Fogo. Nada restou.
— Eu seria o próximo.
Ryder respirou fundo.
— E o pediatra?
— Esse nunca soube de nada.
Estava ali só pra examinar os bebês.
Não sabia da troca.
Era inocente.
— Por isso não o mataram.
Antonios assentiu.
— Só eu e a doutora sabíamos da verdade.
E agora o senhor também sabe.
Ryder se levantou.
A mente está girando.
— E sua amiga? Ainda se correspondeu com ela?
O enfermeiro caminhou até uma cômoda.
Tirou uma pequena caixa de madeira.
Cartas amareladas.
Escritas à mão.
Em português.
— Esta foi a última.
Tem mais de trinta anos.
Ela dizia que Astreia estava bem.
Que havia mudado de nome.
E que sorria ao ver os filhos crescerem.
Ryder segurou a carta como se fosse uma prova de vida.
— Ela está viva, então.
Antonios ergueu os olhos.
— Eu não sei, senhor Ryder.
Mas sei que aquela moça
a verdadeira Astreia.
ela merecia viver.
Na saída, Ryder o encarou uma última vez.
— Se algo acontecer denuncie.
O velho enfermeiro deu um sorriso.
— Se algo acontecer comigo
eu sei que o mundo estará prestes a saber a verdade.
E trancou a porta.
Tic... TAC...
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Atualizado até capítulo 41
Comments
Daiane Sousa
estou amando....posta mais
2025-07-24
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