Capítulo 4
Segredos Entrelaçados
Os dias na escola começaram a adquirir uma rotina própria. Fátima se habituou à sinfonia dos sinos, aos sons das vozes misturadas durante o recreio, aos olhares curiosos e desconfiados dos alunos. Mas, sob a superfície tranquila, ela sentia como se caminhasse por um emaranhado de fios invisíveis, onde cada criança carregava segredos que, de alguma forma, se entrelaçavam aos dela e aos da própria cidade.
O bilhete anônimo ainda circulava em sua mente, tornando-se uma presença constante que a acompanhava nos corredores, durante as reuniões de professores e até em seus raros momentos de descanso. Quem teria escrito aquelas palavras? E qual seria o segredo tão pesado a ponto de ser entregue apenas como um sussurro no papel?
Na primeira quinta-feira do mês, Fátima decidiu abrir um espaço semanal para “escutas anônimas”. Montou uma pequena caixa de papelão, decorada com desenhos feitos pelas próprias crianças, e a deixou em frente à porta de seu consultório. Ao lado, um cartaz explicava:
"Aqui você pode deixar seus segredos, dúvidas ou pedidos de ajuda. Eu vou ler com carinho e cuidar de cada palavra."
No início, a caixa ficou vazia. Mas, aos poucos, começaram a surgir recados tímidos: “Tenho medo de dormir sozinha”, “Queria que meu pai voltasse”, “Às vezes, penso em fugir”. Fátima lia cada um com atenção, respondendo alguns pessoalmente, outros durante rodas de conversa e atividades lúdicas.
Certa manhã, encontrou um novo bilhete, escrito à mão em letras miúdas:
“Eu vejo coisas que ninguém vê. Ninguém acredita em mim. Sinto medo. Por favor, não conte para ninguém.”
O recado mexeu com Fátima. Ela sabia, pela experiência, que a linha entre imaginação e sofrimento era tênue, especialmente na infância. Poderia ser apenas fantasia, mas também um sinal de ansiedade, trauma, ou até mesmo de situações que mereciam atenção especial.
Decidiu abordar o assunto com cuidado nas rodas de conversa. Propôs um jogo onde cada criança poderia compartilhar “um segredo que nunca contou a ninguém”, real ou inventado. Os relatos variaram entre sonhos engraçados, medos noturnos e pequenas travessuras. Mas, no meio da brincadeira, Lúcia levantou a mão, hesitante.
— Às vezes, eu acho que tem alguém me olhando à noite. Mas ninguém acredita.
O silêncio que se seguiu foi denso. Fátima, com toda sua delicadeza, acolheu a fala da menina.
— Sentir medo faz parte da vida. Às vezes, nossos sentimentos parecem tão reais que é difícil separar o que é imaginação do que é verdade. Aqui, podem falar sobre qualquer coisa, combinado?
Outras crianças, encorajadas, também compartilharam seus temores: monstros sob a cama, sombras no corredor, barulhos estranhos durante a noite. Fátima percebeu que, mais do que solucionar mistérios, sua função era legitimar sentimentos. Naquele ambiente seguro, os segredos deixavam de ser fardos individuais e passavam a ser partilhados, gerando cumplicidade e empatia.
No final da atividade, Lúcia se aproximou discretamente.
— Você acredita em mim, doutora?
— Eu acredito em você, Lúcia. E vou te ajudar a entender esse medo, juntos — respondeu Fátima, olhando nos olhos da menina.
No mesmo dia, Fátima foi chamada à direção. Dona Hilda aguardava-a com expressão preocupada.
— Recebemos um aviso do Conselho Tutelar. Parece que um dos alunos pode estar sofrendo maus-tratos em casa. Não sabemos quem. O sinal veio de um vizinho anônimo.
Fátima sentiu o coração apertar. Era o tipo de situação que exigia extrema sensibilidade e sigilo. Decidiram que ela observaria de perto sinais de sofrimento nos alunos, especialmente mudanças bruscas de comportamento, vestígios físicos, isolamento, ou pedidos velados de socorro.
A partir daquele momento, Fátima passou a olhar cada criança com ainda mais atenção. Relembrou os relatos do grupo, os bilhetes anônimos, os desenhos carregados de símbolos. Crianças falando de medo, de solidão, de olhos atentos na noite. Não era coincidência. Os segredos estavam ali, entrelaçados, esperando uma escuta atenta e humana.
Na semana seguinte, durante uma atividade de pintura, Anderson – o menino que cuidava do irmão enquanto a mãe adoecida repousava – desenhou uma casa com janelas trancadas e uma figura pequena atrás das grades. Fátima sentou-se ao seu lado.
— Quem está aí dentro, Anderson?
— É o João. Ele não pode sair.
— E quem é o João?
— Meu amigo. Ele mora na minha rua.
— E por que ele não pode sair?
O menino deu de ombros, desviando o olhar.
Fátima anotou mentalmente: “Isolamento. Possível ligação com denúncia. Observar.”
Ao final do expediente, Fátima sentia-se exausta, como se carregasse nas costas o peso de todos aqueles segredos, reais ou simbólicos. Em casa, diante do diário, escreveu:
"O sofrimento nunca é isolado. Ele se espalha, conecta, se esconde atrás de olhares, gestos, bilhetes. Meu papel é ser fio condutor de escuta, ajudar a desembaraçar os nós."
Naquele final de semana, aceitou o convite de dona Olga para o café. Na mesa da vizinha, entre fatias de bolo e xícaras fumegantes, conversaram sobre a cidade, as famílias, as dores antigas e as alegrias simples. Olga contou que, anos atrás, também fora professora e que, mesmo aposentada, ainda recebia ex-alunos em busca de conselho ou abraço.
— Os segredos das crianças são como raízes de árvore, Fátima. Crescem debaixo da terra, se interligam, sustentam o tronco sem que ninguém veja. Mas, se não forem cuidados, podem sufocar a árvore inteira.
Fátima sorriu, tocada pela sabedoria da vizinha.
— E como a senhora lidava com tantos segredos?
— A gente nunca lida sozinha. Tem que ter coragem para escutar, mas também para pedir ajuda. E nunca esquecer de confiar no tempo.
Voltando para casa, Fátima refletiu sobre o quanto os segredos, quando partilhados, deixavam de ser ameaças e passavam a ser alicerces de relações verdadeiras. Naquele momento, compreendeu que seu trabalho não era apenas ouvir, mas também criar espaços onde a verdade pudesse aparecer sem medo, onde cada fio de segredo pudesse ser desembaraçado com paciência e acolhimento.
Na segunda-feira, encontrou outro bilhete na caixa de escutas:
"Doutora, eu sou o João. Quero sair, mas tenho medo. O que eu faço?"
O coração de Fátima bateu forte. Agora tinha um nome. Agora, o segredo pedia, finalmente, para ser acolhido.
E assim, entrelaçados pelo fio invisível da confiança, Fátima e as crianças da escola davam o primeiro passo rumo à verdade – e à esperança de que, juntos, poderiam transformar até os segredos mais escuros em sementes de um novo começo.
***Faça o download do NovelToon para desfrutar de uma experiência de leitura melhor!***
Atualizado até capítulo 41
Comments