Ecos da Infância

Capítulo 3

Ecos da Infância

O cheiro de giz misturado ao das folhas úmidas do pátio evocava memórias antigas em Fátima. Era como se, ao atravessar os corredores da Escola Carolina de Andrade, ela cruzasse um portal para o passado — não só o das crianças que ali estudavam, mas o seu próprio. O eco de vozes infantis, as conversas sussurradas nas esquinas dos corredores, os risos e choros contidos, tudo a fazia recordar de sua infância, marcada por silêncios, olhares atentos e perguntas sem resposta.

Na terceira semana na cidade, Fátima já era figura conhecida. Os professores a cumprimentavam com crescente cordialidade, as crianças passavam a observá-la com curiosidade menos contida, e até dona Olga, a vizinha do andar de baixo, já lhe oferecera um bolo de fubá, dizendo: “Aqui, todo mundo precisa de um pouco de doçura, doutora.”

Mas, para além do cotidiano, era nos atendimentos individuais que Fátima sentia a pulsação real do seu trabalho. O consultório improvisado na escola era seu porto seguro e também seu campo de batalha. Ali, cada criança trazia consigo uma pequena caixa de ecos: lembranças, traumas, medos, sonhos interrompidos.

Naquela segunda-feira, Lúcia voltou à sala da psicóloga. Sentou-se na cadeira de sempre, o olhar fixo nas mãos, que brincavam nervosamente com a barra da blusa. Fátima ofereceu-lhe lápis de cor e papel, como da primeira vez.

— Hoje, se quiser, pode me contar sobre o seu desenho — sugeriu, com voz calma.

Lúcia hesitou, mas depois de alguns minutos de silêncio, começou a falar, quase num sussurro:

— Essa casa é a da minha avó. Eu morava lá antes de vir pra cá. Eu gostava de brincar com o cachorro, o Tico.

Fátima percebeu a saudade nas palavras da menina.

— Você sente falta da sua avó?

Lúcia assentiu, os olhos marejando.

— Aqui… eu não tenho muitos amigos. E o Tico ficou com ela.

A psicóloga escutou sem interromper. Sabia que, para uma criança, mudar de ambiente pode ser uma experiência de perda tão profunda quanto um luto.

— Às vezes, quando a gente sente falta de alguém, dói, né? — comentou Fátima, validando o sentimento de Lúcia.

A menina concordou. Ficaram alguns minutos em silêncio, compartilhando o peso da saudade. Fátima lembrou-se de si mesma, menina, sentada à beira da cama, esperando o retorno do pai de uma viagem longa, sentindo aquela ausência crescer dentro do peito. Escreveu mentalmente: “A saudade é uma forma de amor que não encontra caminho.”

Depois da sessão, Fátima registrou em seu caderno: “Avó como figura de segurança, cachorro como amigo simbólico. Isolamento escolar. Observar sinais de tristeza prolongada. Possível encaminhamento para atividades integrativas.”

No dia seguinte, Fátima recebeu Anderson, o menino que frequentemente chegava atrasado. Sentado à sua frente, ele não tirava os olhos do chão.

— Como você está hoje, Anderson?

— Tô cansado — respondeu, com voz baixa.

A psicóloga percebeu as olheiras profundas, as roupas um pouco sujas, o cabelo desalinhado.

— Dormiu tarde?

— Minha mãe tava passando mal. Eu que cuidei do meu irmão.

Fátima sentiu um aperto no peito. O peso da infância roubada.

— Você gosta de cuidar do seu irmão?

— Gosto. Mas às vezes queria brincar também.

Fátima viu, na fala de Anderson, o conflito entre responsabilidade e desejo de ser criança. Anotou para si: “Infância interrompida. Buscar rede de apoio para a família. Conversar com equipe da escola sobre flexibilização de tarefas.”

Naqueles primeiros meses, Fátima percebeu que, para muitas crianças, a infância era uma travessia cheia de obstáculos. O brincar, o sonhar, o imaginar — elementos essenciais do desenvolvimento infantil — eram frequentemente substituídos por preocupações adultas: cuidar de irmãos menores, ajudar nas tarefas de casa, lidar com separações, doenças, ausências. Em cada relato, Fátima reconhecia ecos da própria infância, marcada por mães exaustas, pais distantes e o esforço silencioso de ser forte.

Para lidar com tantos pedidos de ajuda, Fátima criou pequenos grupos de acolhimento. Uma vez por semana, reunia crianças que pareciam mais fechadas para jogos cooperativos, rodas de conversa e atividades lúdicas. Descobriu, com o tempo, que o simples fato de brincar junto criava laços, abrindo espaço para que sentimentos emergissem de forma espontânea.

Em um desses grupos, Mariana, uma menina de oito anos, surpreendeu Fátima ao dizer:

— Quando eu era pequena, queria ser passarinho. Agora acho que sou pedra.

A frase ecoou na mente da psicóloga.

— Por que pedra, Mariana?

— Porque pedra não sente. Não chora. Não quebra.

A resposta da menina revelou a dureza de sua experiência. Fátima sentiu vontade de abraçá-la, mas respeitou o espaço.

— Às vezes, a gente vira pedra pra não sofrer. Mas até as pedras sentem, sabia?

Mariana olhou para ela, pensativa.

— Eu queria sentir menos.

Naquele dia, Fátima escreveu em seu diário: “A infância é feita de sonhos, mas também de defesas. Muitas crianças aprendem cedo a se proteger do mundo. Meu papel é ajudá-las a lembrar que sentir não é fraqueza. É o que nos faz humanos.”

No fim do mês, Fátima organizou uma oficina de contação de histórias, convidando os alunos a inventarem finais felizes para os contos tradicionais. Algumas crianças riram, outras choraram, e muitas pediram para participar de novo. Ao ver o brilho nos olhos dos pequenos, Fátima sentiu que, apesar das dores, havia esperança.

A cada atendimento, a psicóloga se via atravessada por suas próprias lembranças. Era impossível não se enxergar nas dores e nas alegrias das crianças. Por vezes, sentia-se exausta, como se carregasse o peso de muitas infâncias interrompidas. Em outras, sentia-se fortalecida, inspirada pelo poder da resiliência.

Ao final de uma tarde intensa, Fátima caminhou até o parque da cidade, sentou-se sob uma árvore e fechou os olhos. Deixou-se embalar pelos sons ao redor: o vento nas folhas, o canto distante de um sabiá, as risadas soltas de crianças que brincavam no balanço. Lembrou-se de sua avó, de mãos quentes e histórias sussurradas antes de dormir. Sorriu, permitindo-se um instante de ternura.

Ali, entre as raízes da árvore e o céu tingido de laranja, Fátima compreendeu que sua missão não era apagar as dores das infâncias que cruzavam seu caminho, mas ajudar a transformá-las em aprendizado, em força, em semente de futuro. E que, ao escutar cada eco, também resgatava pedaços de si mesma — e, assim, caminhava para se tornar uma adulta mais inteira, mais humana.

Na volta para casa, sentiu-se leve, como se carregasse consigo não só as dores, mas também as esperanças de todas as crianças que aprendera a escutar. E, ao escrever em seu caderno antes de dormir, registrou:

“Escutar uma criança é escutar o futuro. E, quem sabe, curar também um pouco do passado.”

Capítulos
1 O Primeiro Sussurro
2 A Chegada à Cidade Nova
3 Ecos da Infância
4 Segredos Entrelaçados
5 O Caso dos Irmãos Fantasmas
6 Entre Quatro Paredes
7 O Dossiê da Dor
8 Vozes do Passado
9 O Peso das Palavras
10 Quando a Cidade Adoece
11 Sobreviventes e Semeadores
12 Novo livro
13 O Abraço da Comunidade
14 Novas Raízes
15 O tempo da colheita
16 O Futuro em Flor
17 Roda de Conversas Virtuais
18 O Jardim da Memória
19 Crianças com Novos Olhares
20 Marcas Invisíveis
21 O Projeto “Sobreviventes e Semeadores”
22 Samuel, o Menino Novo
23 O Conselho das Crianças
24 Pais e Mães: Feridas e Recomeços
25 Professores e Reinvenções
26 A Horta Comunitária
27 Conflitos e Preconceitos
28 Pequenas Vitórias do Cotidiano
29 A Festa do Reencontro
30 Novos Sonhos, Novos Desafios
31 Pertencimento – O Futuro que se Planta Agora
32 A Voz das Crianças: O Conselho se Reinventa
33 Aprender com o Erro – Quando as Coisas Não Saem Como o Esperado
34 O Papel dos Avós – Memória Viva na Escola
35 Novos Professores, Novas Perspectivas
36 A Tecnologia Chega ao Cotidiano
37 Sustentabilidade em Ação – O Projeto Ambiental
38 Entre Línguas e Culturas – A Diversidade que nos Une
39 O Papel do Lúdico – Brincar para Pertencer
40 Entrelaçando Histórias –Projetos de Vida e Sonhos Coletivos
41 O Legado do Pertencimento – Encerramento e Novos Começos
Capítulos

Atualizado até capítulo 41

1
O Primeiro Sussurro
2
A Chegada à Cidade Nova
3
Ecos da Infância
4
Segredos Entrelaçados
5
O Caso dos Irmãos Fantasmas
6
Entre Quatro Paredes
7
O Dossiê da Dor
8
Vozes do Passado
9
O Peso das Palavras
10
Quando a Cidade Adoece
11
Sobreviventes e Semeadores
12
Novo livro
13
O Abraço da Comunidade
14
Novas Raízes
15
O tempo da colheita
16
O Futuro em Flor
17
Roda de Conversas Virtuais
18
O Jardim da Memória
19
Crianças com Novos Olhares
20
Marcas Invisíveis
21
O Projeto “Sobreviventes e Semeadores”
22
Samuel, o Menino Novo
23
O Conselho das Crianças
24
Pais e Mães: Feridas e Recomeços
25
Professores e Reinvenções
26
A Horta Comunitária
27
Conflitos e Preconceitos
28
Pequenas Vitórias do Cotidiano
29
A Festa do Reencontro
30
Novos Sonhos, Novos Desafios
31
Pertencimento – O Futuro que se Planta Agora
32
A Voz das Crianças: O Conselho se Reinventa
33
Aprender com o Erro – Quando as Coisas Não Saem Como o Esperado
34
O Papel dos Avós – Memória Viva na Escola
35
Novos Professores, Novas Perspectivas
36
A Tecnologia Chega ao Cotidiano
37
Sustentabilidade em Ação – O Projeto Ambiental
38
Entre Línguas e Culturas – A Diversidade que nos Une
39
O Papel do Lúdico – Brincar para Pertencer
40
Entrelaçando Histórias –Projetos de Vida e Sonhos Coletivos
41
O Legado do Pertencimento – Encerramento e Novos Começos

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