Capítulo 5 — O Que Sempre Esteve Lá

Laura despertou antes do sol.

Não foi o despertador, nem um barulho.

Foi o incômodo sutil de um pensamento que já a assombrava há dias:

“O que mais eu não vi?”

A rotina sempre fora um véu. Tudo em sua casa era organizado, limpo, aparentemente sem segredos. Mas agora, a mesma organização começava a parecer excesso de zelo, como se fosse usada para esconder aquilo que não deveria ser tocado.

Levantou-se em silêncio e, com o cuidado de quem caminha por um campo minado, atravessou o corredor até o escritório de Henrique.

Era um cômodo que raramente usava. Ele dizia que ali precisava de paz. De concentração. De distância do mundo. E ela respeitava. Sempre respeitou.

Mas agora, sentia-se uma estranha dentro da própria vida.

Começou abrindo gavetas, puxando pastas. Documentos médicos, comprovantes de congressos, certidões de participação. Nada suspeito à primeira vista.

Mas no fundo da gaveta mais inferior, encontrou um envelope amarelado, amassado pelas bordas. Dentro, papéis antigos, alguns já desbotados. A maioria dizia respeito à compra do apartamento em que viviam.

Mas um detalhe chamou sua atenção.

Data do contrato: dois meses antes de Henrique pedi-la em casamento.

No papel, apenas o nome dele. Sem o dela. Sem regime de bens.

Sozinho.

Laura nunca questionou a compra. Ele dissera que queria surpreendê-la, que havia planejado tudo. Ela achara romântico na época. Mas agora, aquilo parecia apenas mais um movimento estratégico.

E mais abaixo no envelope… um cartão.

"Parabéns pela nova etapa. Que seja o início de tudo que você merece. — M."

M.

Ela fechou os olhos.

A mesma inicial da aliança escondida.

A mesma letra que agora parecia sussurrar em todos os cantos da casa.

Naquela tarde, depois de organizar os documentos com cuidado para que nada parecesse mexido, Laura saiu para caminhar. Precisava de ar. De distância. De silêncio.

 Não planejava reencontrar ninguém. Mas o acaso, como sempre, parecia brincar com ela.

Na esquina da rua da biblioteca, a mesma onde estivera dias antes, avistou Daniel. Estava encostado no corrimão, com o blazer dobrado no antebraço e o celular no ouvido. Ao vê-la, sorriu e finalizou a ligação rapidamente.

— Laura — disse, com uma naturalidade que a fez sorrir de volta. — Achei que aquele banco tinha te assustado.

— Não. Na verdade, me fez bem.

— Que bom. Eu sempre digo que algumas conversas são como abrigo. A gente nem sabe que precisa até estar lá dentro.

Ela assentiu, com um meio sorriso.

— E você? Veio respirar de novo?

— Sempre que posso. O escritório fica insuportável quando tudo é sobre perda, herança, briga familiar. Ninguém procura um advogado porque está feliz, sabe?

Laura engoliu em seco.

— Imagino.

Houve um momento de silêncio entre eles. Um silêncio que não era desconfortável. Era só… leve.

— Quer tomar um café? — ele perguntou. — Nada formal. Só um café, como gente que precisa de uma pausa.

Ela pensou por dois segundos. Depois disse sim.

Na cafeteria próxima à praça, conversaram por quase meia hora. Sobre livros. Sobre o ritmo da cidade. Sobre absurdos do cotidiano.

 Daniel era articulado, mas não excessivo. Escutava mais do que falava. E quando falava, havia firmeza e gentileza, sem pressa, sem ensaios.

Laura, por sua vez, sentia-se estranhamente presente. Como se, por alguns minutos, a dor dentro dela ficasse suspensa no ar.

Quando terminaram, ele olhou para ela com um certo cuidado.

— Você parece… cansada por dentro.

Ela baixou os olhos, respirando fundo.

— Estou.

Pela primeira vez, não disfarçou.

Não inventou. Não fingiu.

 Ele não pressionou. Apenas deixou um cartão sobre a mesa.

— Se algum dia quiser conversar… de verdade… estou por aqui.

Laura pegou o cartão e guardou na bolsa.

Não respondeu com palavras. Apenas com um olhar silencioso de agradecimento.

Ao chegar em casa naquela noite, encontrou Henrique no escritório. Ele fechou o laptop ao vê-la entrar e tentou sorrir.

 — Oi, amor. Tudo bem?

 — Tudo — respondeu ela. — Só cansada.

 E então, ele fez algo que a surpreendeu.

— Pensei em viajarmos no próximo fim de semana. Uma pousada, só nós dois. O que acha?

Laura franziu o cenho.

Henrique nunca propunha viagens assim. Sempre dizia estar ocupado. Sempre evitava fins de semana fora, alegando plantões.

Ela sorriu.

— Achei ótimo.

 E saiu do cômodo antes que ele pudesse ver o brilho cortante nos olhos dela.

 Porque agora, ela sabia.

Henrique estava tentando distraí-la.

Mas era tarde demais.

Ela já tinha começado a ver tudo com clareza.

 E nada mais voltaria a ser como antes.

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Comments

Sandra Camilo

Sandra Camilo

isso mesmo a traição é foda e ainda tem uma filha no caminho, torço para ela ligar para o Daniel

2025-07-20

0

Sandra Camilo

Sandra Camilo

Oi autora linda estou amando cada capítulo posta fotos deles

2025-07-20

0

rafamendes

rafamendes

se ela remexer mais vai achar

2025-07-17

0

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Capítulos
1 Capítulo 1 — Uma Vida Impecável
2 Capítulo 2 — A Mulher do Outro Lado
3 Capítulo 3 — Duas Mulheres, Um Silêncio
4 Capítulo 4 — Primeira Fissura
5 Capítulo 5 — O Que Sempre Esteve Lá
6 Capítulo 6 — Viagem para Dois
7 Capítulo 7 — Preparando a Retirada
8 Capítulo 8 — O Peso da Verdade
9 Capítulo 9 — O Homem Que Tenta Voltar
10 Capítulo 10 — Entre o Quebrado e o Recomeço
11 Capítulo 11 — Onde a Calma Mora
12 Capítulo 12 — Quando as Máscaras Caem
13 Capítulo 13 — Tudo Que Ela Reconstrói
14 Capítulo 14 — O Que Ainda Pode Ser Ternura
15 Capítulo 15 — A Sala Onde Tudo Acaba e Recomeça
16 Capítulo 16 — As Coisas que Voltam com Leveza
17 Capítulo 17 — A Mulher Que Voltou Para Si
18 Capítulo 18 — Quando o Novo Encontra as Cicatrizes
19 Capítulo 19 — A Linha que Não se Cruza
20 Capítulo 20 — A Verdade Dita Sem Gritos
21 Capítulo 21 — O Amor Depois da Coragem
22 Capítulo 22 — Aquilo Que Herdamos em Silêncio
23 Capítulo 23 — A Última Tentativa do Controle
24 Capítulo 24 — Justiça, Mentiras e o Valor da Verdade
25 Capítulo 25 — Plantando Onde doeu
26 Capítulo 26 — A Vitória Silenciosa
27 Capítulo 27 — Recomeços Não Anunciam Chegada
28 Capítulo 28 — Quando a Voz Retorna ao Corpo
29 Capítulo 29 — Chaves Que Abrem Muito Mais Que Portas
30 Capítulo 30 — Onde as Coisas Permanecem Porque Fazem Sentido
31 Capítulo 31 — O Que Fica Quando a Dor Vai Embora
32 Capítulo 32 — Mexer No Que Não Dói, Mas Ainda Arde
33 Capítulo 33 — A Voz Que Agora Ecoa
34 Capítulo 34 — Quando Ser Vista Deixa de Ser Ameaça
35 Capítulo 35 — O Peso de Ser Livre (e o Alívio Também)
36 Capítulo 36 — E Se For Simples Assim?
37 Capítulo 37 — O Lugar Onde Me Tornei
38 Capítulo 38 — Onde as Histórias se Encontram
39 Capítulo 39 — O Silêncio que Veio Depois da Fala
40 Capítulo 40 — Quando o Passado Bate, Quem Atende?
41 Capítulo 41 — Quando a História Vira Imagem
42 Capítulo 42 — Quando a Tela Se Torna Espelho
43 Capítulo 43 — Quando a Caneta Não Fere Mais
44 Capítulo 44 — Quando o Amor Também É Narrativa
45 Capítulo 45 — Quando a Palavra Transborda Fronteiras
46 Capítulo 46 — Quando o Retorno É Outra Partida
47 Capítulo 47 — Quando a Voz Ecoa em Outras Vozes
48 Capítulo 48 — Quando o Silêncio Vira Semente
49 Capítulo 49 — Quando o Fim É Só Outra Forma de Permanecer
50 Epílogo — Quando a Palavra Se Torna Herança
Capítulos

Atualizado até capítulo 50

1
Capítulo 1 — Uma Vida Impecável
2
Capítulo 2 — A Mulher do Outro Lado
3
Capítulo 3 — Duas Mulheres, Um Silêncio
4
Capítulo 4 — Primeira Fissura
5
Capítulo 5 — O Que Sempre Esteve Lá
6
Capítulo 6 — Viagem para Dois
7
Capítulo 7 — Preparando a Retirada
8
Capítulo 8 — O Peso da Verdade
9
Capítulo 9 — O Homem Que Tenta Voltar
10
Capítulo 10 — Entre o Quebrado e o Recomeço
11
Capítulo 11 — Onde a Calma Mora
12
Capítulo 12 — Quando as Máscaras Caem
13
Capítulo 13 — Tudo Que Ela Reconstrói
14
Capítulo 14 — O Que Ainda Pode Ser Ternura
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Capítulo 15 — A Sala Onde Tudo Acaba e Recomeça
16
Capítulo 16 — As Coisas que Voltam com Leveza
17
Capítulo 17 — A Mulher Que Voltou Para Si
18
Capítulo 18 — Quando o Novo Encontra as Cicatrizes
19
Capítulo 19 — A Linha que Não se Cruza
20
Capítulo 20 — A Verdade Dita Sem Gritos
21
Capítulo 21 — O Amor Depois da Coragem
22
Capítulo 22 — Aquilo Que Herdamos em Silêncio
23
Capítulo 23 — A Última Tentativa do Controle
24
Capítulo 24 — Justiça, Mentiras e o Valor da Verdade
25
Capítulo 25 — Plantando Onde doeu
26
Capítulo 26 — A Vitória Silenciosa
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Capítulo 27 — Recomeços Não Anunciam Chegada
28
Capítulo 28 — Quando a Voz Retorna ao Corpo
29
Capítulo 29 — Chaves Que Abrem Muito Mais Que Portas
30
Capítulo 30 — Onde as Coisas Permanecem Porque Fazem Sentido
31
Capítulo 31 — O Que Fica Quando a Dor Vai Embora
32
Capítulo 32 — Mexer No Que Não Dói, Mas Ainda Arde
33
Capítulo 33 — A Voz Que Agora Ecoa
34
Capítulo 34 — Quando Ser Vista Deixa de Ser Ameaça
35
Capítulo 35 — O Peso de Ser Livre (e o Alívio Também)
36
Capítulo 36 — E Se For Simples Assim?
37
Capítulo 37 — O Lugar Onde Me Tornei
38
Capítulo 38 — Onde as Histórias se Encontram
39
Capítulo 39 — O Silêncio que Veio Depois da Fala
40
Capítulo 40 — Quando o Passado Bate, Quem Atende?
41
Capítulo 41 — Quando a História Vira Imagem
42
Capítulo 42 — Quando a Tela Se Torna Espelho
43
Capítulo 43 — Quando a Caneta Não Fere Mais
44
Capítulo 44 — Quando o Amor Também É Narrativa
45
Capítulo 45 — Quando a Palavra Transborda Fronteiras
46
Capítulo 46 — Quando o Retorno É Outra Partida
47
Capítulo 47 — Quando a Voz Ecoa em Outras Vozes
48
Capítulo 48 — Quando o Silêncio Vira Semente
49
Capítulo 49 — Quando o Fim É Só Outra Forma de Permanecer
50
Epílogo — Quando a Palavra Se Torna Herança

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