Capítulo 3 — Duas Mulheres, Um Silêncio

O dia amanheceu cinzento, o céu encoberto por nuvens pesadas que pareciam carregar o mesmo peso que Laura sentia no peito. Era sábado, e a cidade se movia devagar, como se soubesse que aquele seria um dia de revelações.

Laura escolheu sua roupa com a precisão de quem planeja uma batalha silenciosa. Optou por algo elegante, mas informal: calça de alfaiataria preta, blusa branca de seda, brincos discretos e um perfume suave. Queria parecer acolhedora, acessível — mas no controle.

Na bolsa, levava apenas o necessário. E o estojo preto com a aliança. Não porque fosse mostrá-lo, mas porque precisava lembrar-se do que a havia levado até ali.

Às 14h45, chegou à cafeteria. A Le Petit Café era charmosa, com mesas de madeira clara, vitrines recheadas de doces delicados e o cheiro reconfortante de café moído na hora. Ela escolheu uma mesa perto da janela e pediu um cappuccino. Observava as pessoas entrando, medindo cada rosto com expectativa contida.

Às 15h02, ela a viu.

Marina entrou usando um vestido azul de mangas curtas e cabelos soltos, levemente ondulados. Trazia uma bolsa pequena a tiracolo e um sorriso gentil no rosto, como se aquele fosse apenas mais um encontro entre mães.

Laura se levantou para cumprimentá-la.

— Marina?

— Laura! Que prazer! — disse ela, estendendo a mão.

O aperto foi breve, cordial. Mas naquele toque, Laura sentiu algo inesperado: fragilidade. Marina não parecia uma mulher arrogante, nem sedutora, nem alguém que soubesse que estava ocupando o espaço de outra. Pelo contrário — havia nela uma doçura discreta, quase ingênua.

— Que lugar adorável — comentou Marina, sentando-se. — Nunca tinha vindo aqui.

— É um dos meus refúgios — respondeu Laura, tentando manter a respiração controlada.

As duas pediram cafés e bolos. A conversa começou leve, quase ensaiada.

— A Lara gosta da escola? — perguntou Laura, mantendo o papel.

— Muito! Ela é uma menina muito sensível, sabe? Gosta de desenhar, de inventar histórias. Às vezes me pergunta por que o pai não mora com a gente, mas… ele sempre aparece. Ela sente que ele está presente.

Laura mordeu o canto do lábio inferior e desviou o olhar por um segundo.

— Ele mora onde, mesmo? — perguntou casualmente.

— Num apartamento na zona norte. Mas viaja muito por causa do hospital. Ele diz que a carga de plantões é pesada.

Laura assentiu, sem piscar. Zona norte. A mesma região em que viviam.

— E ele… é casado? — soltou, fingindo um tom de fofoca cúmplice, como quem pergunta sobre a vida de um conhecido.

Marina franziu a testa, depois riu baixinho.

— Não… pelo menos, não que eu saiba. Ele nunca me falou nada. A gente nunca morou junto oficialmente, sabe? A relação foi crescendo meio devagar. Eu engravidei logo no início. Ele sempre esteve por perto, mas nunca... se comprometeu de verdade.

— E você…? Ama ele?

Marina baixou o olhar, mexendo a colher na xícara, como se procurasse as palavras dentro do café.

— Já amei mais, acho. Hoje… eu não sei. Às vezes sinto que ele é como o vento: está, mas nunca fica de verdade. Só que quando olha pra Lara… parece tão sincero. É por ela que eu deixei tudo continuar assim.

Laura engoliu seco. Sentiu um nó se formando na garganta.

Ali, diante dela, estava a outra mulher. Não uma rival. Não uma ameaça.

Mas outra versão dela mesma.

Outra mulher que acreditava. Que esperava. Que aceitava pouco, em nome do amor.

— Você é forte — disse Laura, surpreendendo até a si mesma com a sinceridade da frase.

Marina sorriu, sem entender totalmente.

— Às vezes, nem sei se sou. Só tento não desmoronar na frente da minha filha.

O encontro durou quase uma hora. Elas conversaram sobre filhos, escolas, a cidade, livros, café — tudo com a leveza de quem ainda vive na superfície, sem saber que há um abismo logo abaixo.

Quando Marina foi embora, Laura permaneceu sentada por longos minutos.

Sentia-se partida ao meio.

Parte dela queria gritar, contar toda a verdade, escancarar a dor que as unia.

Mas a outra parte — a mais fria, a mais racional — ainda não estava pronta. Precisava entender mais. Precisava descobrir há quanto tempo vivia a mentira. Precisava saber até onde Henrique era capaz de ir.

Laura passou o resto da tarde vagando pela cidade sem destino certo. Entrou em uma livraria, folheou alguns títulos que não conseguiu absorver. Pediu outro café, que esfriou na xícara antes mesmo de tocar seus lábios. A imagem de Marina voltava repetidamente à sua mente, como um espelho partido refletindo pedaços de si.

Ela não conseguia odiá-la.

Pior: sentia pena.

Marina vivia à margem da vida de Henrique, sustentando uma ilusão com migalhas de presença. Aceitava a ausência como um preço por algum tipo de amor — o mesmo que Laura pensava ter conquistado com exclusividade por anos.

E a menina… Lara. Tão pequena, tão inocente.

Aquela criança era uma consequência de escolhas que ela desconhecia. Um elo vivo entre duas mentiras.

E se ela tivesse conhecido Henrique depois de Marina?

E se ela fosse… a outra?

A dúvida lhe corroía mais do que a traição.

Era quase oito da noite quando chegou em casa. O apartamento estava escuro, silencioso. No celular, uma mensagem de Henrique:

“Tive uma emergência no hospital. Cirurgia longa. Chego tarde. Te amo.”

Laura soltou uma risada abafada.

Claro. Sempre o hospital. Sempre um álibi perfeito.

Por um momento, pensou em responder com frieza. Um simples “ok”. Mas apagou a frase e escreveu:

“Tudo bem, amor. Me avisa quando chegar. ❤️”

Jogou o celular sobre o sofá e foi direto ao banheiro. Lavou o rosto, prendeu o cabelo num coque e olhou-se no espelho. Os olhos estavam fundos, cansados.

Mas havia firmeza no reflexo.

E por mais contraditório que fosse, Laura sentia que estava acordando depois de anos adormecida.

Meia-noite. Henrique chegou.

Ela já estava na cama, deitada, a luz do abajur ainda acesa.

— Oi, amor — disse ele, entrando no quarto e tirando o paletó. — Desculpa o atraso. A cirurgia complicou mais do que o esperado. Tô esgotado.

— Imagino — respondeu ela, observando-o enquanto ele se despia.

Ele se deitou ao lado dela e a abraçou por trás, como fazia há anos. Laura permaneceu imóvel por alguns segundos, depois correspondeu mecanicamente ao gesto.

— Você tá estranha — ele murmurou contra a nuca dela.

— Só cansada.

Silêncio.

Ele acariciou seu braço e depois a soltou, virando-se para o outro lado.

Pouco depois, já roncava.

Laura permaneceu acordada.

Na mente, as palavras de Marina ecoavam:

“Às vezes sinto que ele é como o vento: está, mas nunca fica de verdade.”

Ela o amava. Ainda amava, de alguma forma.

Mas começava a perceber que amar aquele homem era como abraçar uma sombra.

E agora que havia luz suficiente… ela via as sombras desaparecerem.

No domingo, Henrique acordou mais tarde do que o costume. Tomou café sozinho, enquanto Laura organizava livros na estante da sala. Ela fingia estar absorta na tarefa, mas ouvia cada movimento dele. As xícaras. A geladeira. O som do celular vibrando sobre a bancada.

— Amor — ele chamou. — Você viu meu outro relógio? O prateado, aquele que deixei na cômoda?

Laura virou-se lentamente.

— Não. Deve estar na gaveta de meias.

— Já procurei. Acho que perdi em alguma viagem.

Ela se aproximou e apoiou-se no balcão.

— Em qual viagem, exatamente?

Henrique franziu a testa.

— Como assim?

— Você viaja tanto… que às vezes eu mesma me perco. São tantos plantões, congressos, encontros médicos.

Ele a encarou por alguns segundos, como se buscasse alguma armadilha no tom calmo dela.

— Tá tudo bem, Laura?

— Claro. Por que não estaria?

Ele hesitou. Aproximou-se, tocou seu rosto com a ponta dos dedos.

— É só que… você tá diferente. Distante. Fria.

Ela sorriu. Um sorriso cheio de veneno doce.

— Engraçado… eu ia dizer a mesma coisa sobre você.

Henrique piscou, surpreso.

Mas antes que pudesse responder, ela se afastou, pegou sua bolsa e disse:

— Vou sair. Preciso pensar. Preciso respirar.

Ele não tentou impedi-la. Apenas ficou parado, vendo a porta se fechar atrás dela.

No elevador, Laura encostou a cabeça na parede acolchoada e fechou os olhos.

O jogo estava mudando.

Henrique começava a perceber.

Mas ainda não fazia ideia do quanto ela já sabia.

E ela ainda não fazia ideia de quão fundo estava disposta a ir.

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Comments

rafamendes

rafamendes

pior que essa história é realidade de muitas pessoas.Deus o livre, não consigo mensurar esse tipo de dor

2025-07-17

0

Sandra Camilo

Sandra Camilo

tomara que ela desmacare ele , e apareça outro para ela

2025-07-20

0

Antonia Teófilo

Antonia Teófilo

nossa que triste tadinha de Laura traição dói tanto.

2025-07-18

0

Ver todos
Capítulos
1 Capítulo 1 — Uma Vida Impecável
2 Capítulo 2 — A Mulher do Outro Lado
3 Capítulo 3 — Duas Mulheres, Um Silêncio
4 Capítulo 4 — Primeira Fissura
5 Capítulo 5 — O Que Sempre Esteve Lá
6 Capítulo 6 — Viagem para Dois
7 Capítulo 7 — Preparando a Retirada
8 Capítulo 8 — O Peso da Verdade
9 Capítulo 9 — O Homem Que Tenta Voltar
10 Capítulo 10 — Entre o Quebrado e o Recomeço
11 Capítulo 11 — Onde a Calma Mora
12 Capítulo 12 — Quando as Máscaras Caem
13 Capítulo 13 — Tudo Que Ela Reconstrói
14 Capítulo 14 — O Que Ainda Pode Ser Ternura
15 Capítulo 15 — A Sala Onde Tudo Acaba e Recomeça
16 Capítulo 16 — As Coisas que Voltam com Leveza
17 Capítulo 17 — A Mulher Que Voltou Para Si
18 Capítulo 18 — Quando o Novo Encontra as Cicatrizes
19 Capítulo 19 — A Linha que Não se Cruza
20 Capítulo 20 — A Verdade Dita Sem Gritos
21 Capítulo 21 — O Amor Depois da Coragem
22 Capítulo 22 — Aquilo Que Herdamos em Silêncio
23 Capítulo 23 — A Última Tentativa do Controle
24 Capítulo 24 — Justiça, Mentiras e o Valor da Verdade
25 Capítulo 25 — Plantando Onde doeu
26 Capítulo 26 — A Vitória Silenciosa
27 Capítulo 27 — Recomeços Não Anunciam Chegada
28 Capítulo 28 — Quando a Voz Retorna ao Corpo
29 Capítulo 29 — Chaves Que Abrem Muito Mais Que Portas
30 Capítulo 30 — Onde as Coisas Permanecem Porque Fazem Sentido
31 Capítulo 31 — O Que Fica Quando a Dor Vai Embora
32 Capítulo 32 — Mexer No Que Não Dói, Mas Ainda Arde
33 Capítulo 33 — A Voz Que Agora Ecoa
34 Capítulo 34 — Quando Ser Vista Deixa de Ser Ameaça
35 Capítulo 35 — O Peso de Ser Livre (e o Alívio Também)
36 Capítulo 36 — E Se For Simples Assim?
37 Capítulo 37 — O Lugar Onde Me Tornei
38 Capítulo 38 — Onde as Histórias se Encontram
39 Capítulo 39 — O Silêncio que Veio Depois da Fala
40 Capítulo 40 — Quando o Passado Bate, Quem Atende?
41 Capítulo 41 — Quando a História Vira Imagem
42 Capítulo 42 — Quando a Tela Se Torna Espelho
43 Capítulo 43 — Quando a Caneta Não Fere Mais
44 Capítulo 44 — Quando o Amor Também É Narrativa
45 Capítulo 45 — Quando a Palavra Transborda Fronteiras
46 Capítulo 46 — Quando o Retorno É Outra Partida
47 Capítulo 47 — Quando a Voz Ecoa em Outras Vozes
48 Capítulo 48 — Quando o Silêncio Vira Semente
49 Capítulo 49 — Quando o Fim É Só Outra Forma de Permanecer
50 Epílogo — Quando a Palavra Se Torna Herança
Capítulos

Atualizado até capítulo 50

1
Capítulo 1 — Uma Vida Impecável
2
Capítulo 2 — A Mulher do Outro Lado
3
Capítulo 3 — Duas Mulheres, Um Silêncio
4
Capítulo 4 — Primeira Fissura
5
Capítulo 5 — O Que Sempre Esteve Lá
6
Capítulo 6 — Viagem para Dois
7
Capítulo 7 — Preparando a Retirada
8
Capítulo 8 — O Peso da Verdade
9
Capítulo 9 — O Homem Que Tenta Voltar
10
Capítulo 10 — Entre o Quebrado e o Recomeço
11
Capítulo 11 — Onde a Calma Mora
12
Capítulo 12 — Quando as Máscaras Caem
13
Capítulo 13 — Tudo Que Ela Reconstrói
14
Capítulo 14 — O Que Ainda Pode Ser Ternura
15
Capítulo 15 — A Sala Onde Tudo Acaba e Recomeça
16
Capítulo 16 — As Coisas que Voltam com Leveza
17
Capítulo 17 — A Mulher Que Voltou Para Si
18
Capítulo 18 — Quando o Novo Encontra as Cicatrizes
19
Capítulo 19 — A Linha que Não se Cruza
20
Capítulo 20 — A Verdade Dita Sem Gritos
21
Capítulo 21 — O Amor Depois da Coragem
22
Capítulo 22 — Aquilo Que Herdamos em Silêncio
23
Capítulo 23 — A Última Tentativa do Controle
24
Capítulo 24 — Justiça, Mentiras e o Valor da Verdade
25
Capítulo 25 — Plantando Onde doeu
26
Capítulo 26 — A Vitória Silenciosa
27
Capítulo 27 — Recomeços Não Anunciam Chegada
28
Capítulo 28 — Quando a Voz Retorna ao Corpo
29
Capítulo 29 — Chaves Que Abrem Muito Mais Que Portas
30
Capítulo 30 — Onde as Coisas Permanecem Porque Fazem Sentido
31
Capítulo 31 — O Que Fica Quando a Dor Vai Embora
32
Capítulo 32 — Mexer No Que Não Dói, Mas Ainda Arde
33
Capítulo 33 — A Voz Que Agora Ecoa
34
Capítulo 34 — Quando Ser Vista Deixa de Ser Ameaça
35
Capítulo 35 — O Peso de Ser Livre (e o Alívio Também)
36
Capítulo 36 — E Se For Simples Assim?
37
Capítulo 37 — O Lugar Onde Me Tornei
38
Capítulo 38 — Onde as Histórias se Encontram
39
Capítulo 39 — O Silêncio que Veio Depois da Fala
40
Capítulo 40 — Quando o Passado Bate, Quem Atende?
41
Capítulo 41 — Quando a História Vira Imagem
42
Capítulo 42 — Quando a Tela Se Torna Espelho
43
Capítulo 43 — Quando a Caneta Não Fere Mais
44
Capítulo 44 — Quando o Amor Também É Narrativa
45
Capítulo 45 — Quando a Palavra Transborda Fronteiras
46
Capítulo 46 — Quando o Retorno É Outra Partida
47
Capítulo 47 — Quando a Voz Ecoa em Outras Vozes
48
Capítulo 48 — Quando o Silêncio Vira Semente
49
Capítulo 49 — Quando o Fim É Só Outra Forma de Permanecer
50
Epílogo — Quando a Palavra Se Torna Herança

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