Capítulo 5 — A Sombra Que Veio Me Buscar

Capítulo 5 – A Sombra Que Veio Me Buscar

O carro arrancou de um jeito tão brusco que quase bati a cabeça no banco da frente. Eu nem sabia quanto tempo tinha passado desde que me arrastaram da casa da Hella, mas parecia que eu tinha deixado outra vida inteira pra trás. Ficou lá naquela sala abafada, com cheiro de cigarro e medo embolorado nas paredes.

Agora só tinha o frio da noite grudando na pele suada e esse banco de couro fedendo a gasolina e desinfetante barato.

Tava sentada no meio do banco de trás, com os pulsos amarrados por uma abraçadeira plástica que mordia meu pulso toda vez que eu me mexia. O motor roncava sob os meus pés e a cidade parecia correr de ré do lado de fora, distorcida pelos vidros escuros.

Respirei fundo, tentando controlar o tremor que subia do peito. Mas chorar? Nem fodendo. Eles não iam ver isso.

Pelo retrovisor, eu via os dois caras na frente. Um dirigia, o outro grudado no celular, com aquela luz azul nojenta iluminando só metade da cara. Nenhum deles olhava pra mim. Como se eu fosse só mais um pacote pra entregar.

Cuspi no chão do carro. A saliva escorreu quente pelo queixo.

— Sabe o que é engraçado? — minha voz saiu baixa, rouca, quase rindo. — Vocês realmente acham que tão fazendo a coisa certa. Que têm esse direito.

Silêncio. O do celular só passou a tela, como se eu nem tivesse falado.

Meu peito doía. Como se o coração quisesse rasgar as costelas e sair correndo. Encostei a testa no braço preso, puxei o ar devagar.

— Eu não tenho porra nenhuma pra perder — murmurei. O gosto da frase veio amargo, azedo, tipo bile. — Podem fazer o que quiserem. Eu já tô no fundo do poço.

O silêncio continuou. Pesado. Desgraçado. Pior que tapa na cara.

Só o ronco do motor, a luz dos postes riscando os vidros, e o martelo do meu coração avisando que eu ainda tava ali.

Ainda viva. Mesmo que cada parte minha quisesse explodir.

O carro freou seco e eu fui jogada pra frente. A abraçadeira apertou meus pulsos de um jeito que ardeu até o osso. O motor tossiu antes de morrer. Tudo parou.

Levantei a cabeça. Do lado de fora, um prédio fudido, cheio de rachadura e musgo. Um portão de ferro que parecia prestes a desmontar. O cheiro chegou antes da porta abrir: ferrugem, óleo velho, podridão molhada.

O cara do banco do passageiro saiu primeiro. O outro veio até mim, abriu a porta e enfiou a mão no meu braço. Quando me puxou pra fora, meus pés arrastaram na terra batida. Tentei firmar as pernas, mas elas tremiam como vara verde.

— Anda — ele rosnou, me dando um tranco.

Ergui o queixo. Se era pra me levar, iam me ver de frente.

O portão rangeu alto quando abriu. O barulho pareceu arranhar a espinha do mundo. O armazém era ainda mais podre por dentro. Barris jogados, correntes no chão, chão sujo de óleo. A única luz vinha de uma lâmpada pendurada num fio torto, balançando devagar, espalhando sombra onde já não tinha nada.

Foi ali que eu vi ele.

O homem. Aquele merda que eu tinha socado.

Tava lá, parado no meio da merda toda, paletó claro, sapato brilhando. Uma mão no bolso. Postura de quem acha que ainda tem o controle.

Quando me viu, sorriu. Devagar. Como se tivesse esperando esse momento desde sempre.

— Eu disse que você ia se arrepender — falou, voz mansa, nojenta.

Meu coração deu um pulo. Mas eu não baixei a cabeça.

Ergui o queixo. Ele não ia ver medo nos meus olhos. Nem fodendo.

O desgraçado deu um passo. A lâmpada balançou e fez o olho dele brilhar. E foi aí que eu percebi: ele não queria só vingança.

Ele queria me destruir.

Antes que eu reagisse, os capangas me puxaram de novo. Me arrastaram por aquele chão imundo até o centro da luz. Tentei travar os pés, só deixei rastro na poeira.

Empurraram uma cadeira torta pra debaixo da lâmpada. O barulho do metal no chão foi tão alto que doeu no ouvido.

— Senta — ordenou um deles.

Fiquei parada. O coração pulando na garganta. Mas ele apertou meu ombro e minhas pernas cederam. O assento gelado encostou na minha pele arrepiada.

Outro puxão e meus pulsos foram presos atrás da cadeira. Mais uma abraçadeira. Mais dor.

Por uns segundos, só dava pra ouvir minha respiração e o barulho da lâmpada balançando.

O homem começou a andar em volta de mim. Mãos atrás das costas, passos secos no chão. Ritmado. Como um relógio de contagem regressiva.

— Sabe o que me dá nojo? — ele disse. A voz era quase carinhosa. — A ousadia. Essa mania de gente medíocre achar que pode falar com quem tem poder.

Continuei olhando pro chão. Cada rachadura parecia uma boca pronta pra me engolir.

— Você podia ter abaixado a cabeça. — A voz dele virou veneno. — Mas preferiu cuspir no meu rosto. Me chamar de merda.

Meu peito subia e descia rápido demais. Mas eu não abri a boca. Qualquer palavra só ia dar mais munição.

Então respirei fundo. E calei.

Foi ali, com o rosto virado pro chão, que minha cabeça começou a rodar. Pensei na Hella, do jeito dela. Na Jessika, rindo da nossa miséria. Na Amanda, me segurando quando tudo parecia quebrar.

Pensei que, se eu morresse ali, ia ser isso. Um galpão sujo. Um filho da puta engravatado. E o meu orgulho. Só isso.

E aí eu tive medo. Medo de verdade. Daquele que encolhe o coração e trava os pulmões.

Ele parou bem na minha frente. O sapato brilhou debaixo da luz fraca. Eu não olhei pra ele. Porque se olhasse, ele ia ver. Que eu tava quebrada por dentro.

Foi então que ouvi passos. Pesados. Ritmados. Cada passo fazia o chão vibrar.

A porta de metal se abriu com um rangido de filme de terror. Lento. Cruel.

Três homens entraram. Recortados contra a luz morta lá de fora.

O da frente… era diferente de tudo que eu já tinha visto. Alto, elegante, um terno perfeito. Os olhos… puta que pariu, os olhos. Um azul claro e frio que me travou inteira. Ele nem precisava falar. A presença dele esmagava.

Do lado esquerdo, um brutamonte careca, todo tatuado. Braços cruzados. Olhar de quem podia te matar só com um pensamento. Do lado direito, outro cara — mais novo, ruivo, cabelo bagunçado, barba feita. Sorria como quem tava curtindo o show.

Ninguém se mexeu. Meu estômago caiu.

O homem que me trouxe ficou pálido. Eu vi. Vi o desespero nas pupilas dele.

O cara dos olhos claros deu dois passos. Cada passo parecia pesar mil quilos. Ele olhou em volta, com aquele ar de dono do mundo, e abriu um sorriso curto. Sem humor.

— Interessante — murmurou. A voz dele era baixa, mas cada sílaba cortava. — Você deve ser muito corajoso… ou muito burro.

Ninguém respondeu. E eu? Eu só conseguia respirar.

Porque agora, até o idiota que me sequestrou parecia mais assustado que eu.

E isso… isso dizia muita coisa.

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