Meu pai saiu de casa num domingo à tarde.
Estava de chinelo, calça jeans e uma mochila pequena nas costas. Disse que ia “dar um tempo”.
Eu tinha nove anos e, naquele dia, fiquei sentada no sofá até o sol ir embora, esperando ele voltar.
A cada carro que passava na rua, meu coração disparava. A cada chave que batia no portão do vizinho, eu prendia a respiração. Eu achava, com toda a inocência de uma criança, que aquilo era só uma briga, que ele logo voltaria com um sorriso sem graça, dizendo que estava com saudade.
Mas ele nunca voltou.
Nos primeiros dias, minha mãe tentou disfarçar. Dizia que ele estava “resolvendo umas coisas”. Que precisava pensar. Que logo aparecia.
Depois de um tempo, ela parou de falar sobre ele.
E aí, o silêncio tomou conta da casa — aquele velho conhecido que já morava com a gente há muito tempo. Só que agora ele tinha outro cheiro, outro gosto, outro peso. Um silêncio com mais buraco, mais eco, mais vazio.
Eu não sei o que doeu mais: o abandono em si ou a forma como ele foi tratado.
Como se não tivesse acontecido nada.
Como se eu não tivesse o direito de sofrer.
Eu queria perguntar.
Queria saber se ele pensava em mim.
Se ele tinha se arrependido.
Se ele ainda me amava.
Mas cada vez que minha boca se abria, vinha um olhar duro, uma resposta atravessada ou aquele velho “ele teve os motivos dele”.
E eu aprendi a engolir a ausência do mesmo jeito que se engole um comprimido grande demais: sem água, com esforço, entalando na garganta.
O mais cruel é que, mesmo longe, ele continuava presente.
Não no carinho, não nas ligações ou visitas, mas nos fantasmas que ele deixou.
Na raiva que minha mãe segurava e nunca nomeava.
Na comparação dolorosa: “você tem o mesmo gênio dele”.
No medo que eu sentia de repetir os passos de um homem que eu mal conhecia, mas que tinha me deixado uma herança invisível.
Com o tempo, fui entendendo: abandono não é só ir embora.
Abandono também é estar, mas não estar de verdade.
É estar no mesmo teto e nunca perguntar se você está bem.
É olhar pro seu filho e enxergar um peso, uma sombra, uma obrigação.
Tem gente que sofre porque o pai morreu.
Eu sofria porque o meu estava vivo — só que, pra mim, nunca existiu.
Ele não me ensinou a andar de bicicleta.
Não me levou ao cinema.
Não foi nas reuniões da escola.
Não ouviu meu primeiro choro de amor.
Não sabia nem o nome das minhas amigas.
Não fazia ideia de quem eu era.
A verdade é que meu pai partiu muito antes de sair pela porta.
A diferença é que, naquele domingo, ele apenas oficializou o abandono.
Deixou de fingir.
Na adolescência, quando alguém reclamava do pai por coisas pequenas — um conselho mal dado, uma bronca mal colocada — eu só pensava: pelo menos ele está aí.
Porque a ausência não dá conselho. Não briga. Não atrapalha.
Mas também não ama.
E quando me diziam: “mas pelo menos ele nunca bateu em você”, eu só respirava fundo.
Porque tem ausências que deixam buracos tão profundos que é difícil explicar.
Não têm marca roxa, mas têm trauma.
Não deixam cicatriz na pele, mas dilaceram por dentro.
Hoje, eu já não espero ele voltar.
Mas, às vezes, ainda me pego imaginando o que ele diria se me visse.
Se ele reconheceria minha voz.
Se sentiria orgulho.
Ou se continuaria andando, como se eu fosse mais uma na rua.
Aprendi a crescer sem ele.
Mas não vou mentir: foi mais difícil do que muita gente imagina.
Faltou colo.
Faltou referência.
Faltou cuidado.
E mesmo que eu tenha aprendido a ser forte, ainda dói saber que essa força nasceu da falta.
> “Tem ausências que doem mais do que presenças violentas.”
🧠 Reflexão:
Um pai ausente também pode ferir profundamente.
Não estar presente é uma forma de negligência — mesmo quando ninguém grita, mesmo quando tudo parece “em paz”.
Você tem direito de sentir raiva, tristeza, abandono.
Mesmo que os outros minimizem. Mesmo que digam que “poderia ter sido pior”.
Validar a sua dor é o primeiro passo para que ela não defina quem você vai ser.
Você pode crescer sem pai, mas não precisa crescer sem cuidado.
Você merece ser ouvida. E merece recomeçar — do seu jeito, no seu tempo, com a sua voz.
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Atualizado até capítulo 25
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