CAPÍTULO 2.

📖 Capítulo 2 – Vozes do Morro

Melissa acordou antes mesmo do sol surgir no horizonte. O céu ainda estava tingido de tons azulados, e a neblina cobria parte do Vidigal como um véu pesado. Seu corpo doía do cansaço dos últimos dias, mas o olhar determinado refletido no espelho rachado da casa lembrava quem ela era: uma mulher que não se rendia.

Depois de preparar o café com o pouco que tinha — café fraco e pão amanhecido — acordou sua filha com beijos e promessas de que tudo ficaria bem. Alice ajudava a arrumar a casa e Melissa prendia os cabelos e vigiava o tempo. Precisava levá-la até a escola comunitária e depois descer para continuar a busca por trabalho.

Na rua principal, os becos fervilhavam. O comércio informal despertava, homens carregando caixas de bebidas e cigarros ilegais, crianças correndo descalças e carros com vidros escuros passando lentamente, observando cada movimento. O clima de tensão era constante; qualquer desatenção poderia ser interpretada como desrespeito ou, pior, traição.

Quando Melissa entrou na pequena escola, foi recebida pela professora de sorriso bondoso. As crianças correram para as salas improvisadas com carteiras tortas, mochilas rasgadas e cartazes coloridos presos com fita adesiva. Melissa se despediu da filha com abraços fortes, lembrando de obedecer, estudar e, acima de tudo, respeitar a todos.

Na descida do morro, as vozes sussurradas sobre o “terrorista do Vidigal” se tornavam mais constantes. Cada grupo de moradores parecia ter uma história diferente sobre ele: uns diziam que ele matava sem pensar duas vezes; outros, que era um estrategista frio, que planejava cada movimento com precisão mortal. E havia quem contasse que ele havia perdido os movimentos das pernas por um castigo divino — mas todos, sem exceção, baixavam os olhos quando falavam seu nome.

Melissa atravessava essas conversas como quem corta uma neblina: firme, mas cautelosa. Sentia os olhares de curiosidade e julgamento, afinal, era a nova moradora do morro. Muitos cochichavam pelas costas, outros apenas observavam, esperando para ver se ela aguentaria a pressão do lugar ou se seria mais uma a desistir.

Chegou ao posto de saúde perto das nove da manhã. O movimento era intenso: crianças febris, mulheres grávidas, idosos debilitados. O corredor exalava um cheiro forte de desinfetante misturado com o suor de dezenas de corpos aglomerados. O som de tosses, choros e gritos de dor ecoava pelos corredores estreitos.

— Ainda não temos vaga para você — disse a mesma recepcionista do dia anterior, sem levantar os olhos do monitor velho. — Volte semana que vem.

Melissa respirou fundo, conteve o desespero e agradeceu com a voz calma que treinara por anos para não demonstrar fraqueza. Saiu do posto, mas em vez de voltar para casa, percorreu cada viela próxima, perguntando em salões de beleza, botecos, barracas de comida, lojinhas de roupas e farmácias se precisavam de ajuda. O “não” era quase sempre imediato, seguido de um olhar de desconfiança ou pena.

Enquanto caminhava, viu Gabriel, o braço direito do terrorista, passando em uma moto potente. O motor roncava alto, e ele levava uma expressão de quem não sorria havia anos. As pessoas se afastavam do caminho, e alguns moradores chegavam a encostar na parede para dar passagem. Melissa, no entanto, manteve-se no meio da rua, ereta, sem vacilar — não seria intimidada por ninguém.

Quando voltou para casa no fim da manhã, encontrou Alice lendo um livro. A imagem aqueceu seu coração. Alice sorria ao vê-la chegar e corre para seus braços, implorando atenção. Ela a abraçou com força, deixando as lágrimas escaparem. Estava exausta, mas ainda de pé.

O restante da tarde foi dedicado a limpar o barraco. Melissa esfregou cada canto, limpou as janelas, lavou o banheiro e organizou as poucas roupas. Alice a ajudava com alegria.

— Vai dar certo, mãe? — perguntou Alice, com os olhinhos marejados.

— Vai sim, meu amor. — Melissa respondeu, segurando o rosto dela com ternura. — Porque a mamãe nunca vai desistir de você.

O resto do dia se arrastou entre cuidados com as crianças e a preparação de um jantar simples. Enquanto cortava legumes, Melissa pensava em como a vida dera tantas voltas. De um casamento infeliz em Botafogo para a solidão da viuvez, da luta para pagar aluguel até aquele momento: morando no Vidigal, com uma filha e a esperança de encontrar um emprego que sustentasse sua família.

Quando anoiteceu, a calmaria não chegou. O som de tiros ecoou distante, interrompendo o silêncio. Melissa abraçou a filha com força, tentando não demonstrar medo. Alice já entendia o significado daqueles estampidos e, silenciosamente, se encolhera ao lado dela. Era a realidade nua e crua: no Vidigal, a qualquer hora do dia ou da noite, a violência lembrava a todos quem mandava ali.

De madrugada, Melissa acordou assustada com vozes altas na rua. Espiou pela janela e viu homens armados caminhando com fuzis pendurados no peito. Um deles gritava ordens enquanto outro arrastava um morador pelo braço. Ela sentiu o coração disparar. Sabia que o Vidigal tinha suas próprias regras — e que qualquer passo em falso poderia custar uma vida.

Mesmo assim, ao fechar a cortina improvisada, Melissa não permitiu que o medo tomasse conta. Deitou-se no colchão junto da filha, a abraçou e prometeu a si mesma que faria o impossível para protegê-las. Sabia que tinha entrado em um mundo que não perdoava os fracos — mas ela não era fraca.

E enquanto o som dos tiros se tornava cada vez mais distante, ela adormeceu com um pensamento que a mantinha viva: não importava o que viesse, estava pronta para enfrentar tudo.

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Gigliolla Maria

Gigliolla Maria

uma mãe guerreira que luta atrás de um emprego

2025-07-09

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