Cleia afundou-se na cadeira de couro com o corpo ainda um pouco tenso, as pernas cruzadas de maneira desajeitada, como quem não sabia se devia se acomodar ou estar pronta para correr a qualquer momento.
A textura macia da cadeira contrastava com o tecido áspero e encardido de sua calça surrada. Mesmo ali, naquele cenário de luxo absurdo, ela mantinha o queixo erguido e os olhos atentos.
O hostes retornou com o cardápio entre as mãos, agora completamente transformado. A arrogância de antes dera lugar a uma humildade quase teatral, seus movimentos cuidadosos demais, os olhos sempre baixos.
— Senhorita... - Disse em tom brando, como se falasse com a realeza: —... permita-me o cardápio da casa.
Entregou-lhe com as duas mãos, como se oferecesse um tesouro ancestral. Cleia o pegou e começou a folhear, os olhos varrendo as páginas com curiosidade crescente. As letras douradas brilhavam sob a luz suave, e as descrições dos pratos pareciam mais poesia do que culinária.
Os clientes nas mesas ao redor ainda lançavam olhares de julgamento. Murmúrios discretos, olhares que varriam a sua roupa e depois se voltavam uns para os outros com expressões escandalizadas.
Mas ela ignorava todos com a maestria de quem já se acostumou a ser invisível — ou indesejada.
Ela virou uma página e parou, os olhos arregalando-se como se tivesse acabado de encontrar um crime impresso.
— Tudo isso por um pedaço de carne? - Exclamou, chocada, falando alto o Suficiente para uma mesa vizinha tossir em protesto.
O hostes estremeceu.
— Cinco mil reais por uma carne mal passada? - Repetiu, agora erguendo o olhar com indignação cômica: — Tem gente que paga tudo isso por um bife quase cru?
O homem quase teve um pequeno infarto. Sua mão direita foi imediatamente ao peito, como se tentasse conter o impacto da heresia.
O rosto se contraiu em um misto de espanto e vergonha alheia.
Foi então que Nathaniel Castelier soltou uma gargalhada sonora. Rica, despreocupada, contagiante. O som preencheu o ambiente, e por um momento, todos os olhares se voltaram a ele — não mais para Cleia.
O patriarca estava se divertindo, como não fazia há anos.
— Não olhe o valor, minha querida. Apenas faça o pedido.
Ela virou a cabeça devagar e o encarou.
— Mas eu não quero levar o senhor à falência, né?
Um dos seguranças, parado atrás do velho com os braços cruzados, quase soltou uma gargalhada. Teve que virar o rosto, tossindo para disfarçar.
— Me dê esse prato aqui. - Disse ela ao hostes, apontando para uma das carnes do cardápio: — Mas já vou avisando: não quero ver sangue no prato. Se eu quisesse pagar pra comer algo cru, eu mesma roubava um pedaço do açougueiro e nem lavava.
O host ficou pálido, perplexo, estático por um instante. As palavras pareceram bater como bofetadas na etiqueta engomada do restaurante.
Ele respirou fundo, cerrou os dentes e, após uma pequena reverência, saiu com desgosto contido, murmurando para si mesmo sobre "ofensas culinárias imperdoáveis".
Enquanto se afastava, Cleia ainda resmungava baixo:
— Cinco mil num prato... pra vir com essência de feno e batata reduzida no vinho do Himalaia, francamente...
Nathaniel estava encantado. Encostou-se na cadeira com um sorriso sereno, observando aquela jovem sem filtros, tão deslocada e ao mesmo tempo tão autêntica.
— Então me fale algo sobre você, o que fez morar nas ruas? - Disse ele, agora com a voz baixa, curiosa.
Cleia parou de resmungar, fechou o cardápio com um estalo suave e o apoiou na mesa. Seus olhos claros o encararam com calma, mas sem defensiva.
— O senhor quer saber o quê? O currículo que perdi junto com minha casa? — disse com ironia, depois deu de ombros: — Meus pais morreram faz alguns anos. Um acidente de carro. A casa tinha dívidas, e eu não tinha a quem recorrer. Os bancos não esperam ninguém chorar. A rua foi tudo que sobrou.
Ela pegou o copo de água à sua frente com elegância inesperada, mas bebeu como quem não tem tempo pra frescura.
— Aprendi a me virar. A comer lixo, a dormir com um olho aberto, a brigar quando tentam roubar sua coberta no meio da noite. E agora tô aqui... falando com o dono do restaurante mais caro da cidade como se isso fosse normal.
Nathaniel permaneceu em silêncio por alguns segundos, absorvendo cada palavra. Aquela jovem tinha algo raro: verdade crua, sem adornos.
— E a senhorita... sempre fala desse jeito?
Cleia sorriu com um brilho zombeteiro.
— Só quando estou com fome. Quando como, viro um anjo.
Ele riu mais uma vez, enquanto os outros clientes, agora, olhavam com menos desprezo... e um pouco mais de espanto.
Ela estava com o corpo ligeiramente curvado sobre a mesa, os dedos deslizando de leve pelo copo d’água. A água já não estava tão gelada, mas ela não se importava. Seus olhos se perderam por um instante no reflexo da taça, até que a voz gentil de Nathaniel a chamou de volta:
— E onde você dorme, minha neta?
A pergunta veio carregada de ternura. Um calor inesperado atravessou o peito de Cleia.
“Minha neta.” Aquele modo de dizer — tão carinhoso, tão protetor — a desmontou por dentro. Seu coração, endurecido pelas noites frias e solitárias, aqueceu por um segundo.
— Em qualquer lugar... - Respondeu baixinho, mas com firmeza: — Banco de praça, ônibus abandonado, escada de prédio vazio. Onde tiver um canto e pouca gente por perto, a gente aprende a ser forte mesmo diante de uma tempestade, senhor Castelier.
Nathaniel franziu os lábios, e antes que ela seguisse, ele a corrigiu com delicadeza:
— Me chame de Nathaniel. Nada de Castelier. Apenas Nathaniel.
Ela piscou surpresa. Estava acostumada a ser tratada com descaso ou superioridade, nunca com essa humildade tranquila.
— Ok... Vou lhe chamar no diminutivo: Nathan.
Um sorriso leve surgiu em seu rosto. E então, com mais honestidade ainda, disse:
— Morar nas ruas não é necessariamente ruim. A gente aprende a sobreviver com defesa pessoal. Quando temos um teto, comida, um armário cheio de roupas, a gente não presta atenção em nada disso. Mas quando não temos nada... até um broche quebrado de cabelo que se acha na calçada vira um tesouro. Você olha pra ele e pensa: “É meu, ninguém vai tirar de mim.” E valoriza.
Nathaniel a escutava com um brilho nos olhos, tocado por cada palavra. Aquilo não era só uma lição de sobrevivência — era uma filosofia.
Uma alma lapidada pela miséria, mas não corrompida por ela.
— Meu neto vai chegar logo. - Disse ele, após um breve silêncio.
Cleia endireitou-se na cadeira, assentindo.
— Claro... posso ir embora quando eles chegarem.
Mas o que veio depois a fez congelar no lugar.
— Eu quero que você fique.
Ela o olhou com os olhos entreabertos, sem entender. O idoso sorriu, enigmático.
— Tenho uma ideia... para ajudar você. E para ajudar meu neto também.
Cleia arregalou os olhos, desconfiada e curiosa ao mesmo tempo.
— Que ideia?
O idoso apenas ajeitou a bengala ao lado da mesa e, com um sorriso secreto, respondeu:
— Você logo vai saber.
Ela ficou imóvel por alguns segundos, o coração batendo um pouco mais forte.
Naquela tarde que havia começado com restos de comida de um lixo, ela estava agora diante de um homem milionário — e algo lhe dizia que a vida estava prestes a dar uma guinada impossível de prever.
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Atualizado até capítulo 68
Comments
Marilena Yuriko Nishiyama
nossa a Cléia sofre,não ter ninguém para ajudá-la e não sei o que o senhor Nathaniel irá propor quando o neto chegar,mas creio que será um contrato de casamento,na minha opinião
2025-06-17
1
marlene morais
É maravilhoso quando um romance começa assim, com pessoas sofridas e ricos com muita bondade.
2025-06-16
1
Salete Michels de Gracia
Claro que morar na rua é mais fácil do que trabalhar né 🤔 afinal quantos anos ela tem??
2025-07-07
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