Pensamento de Heitor
"Ela vai me odiar. E vai ter razão. Mas se eu apareço... se eu digo sim diante de todos, eu a arrasto pra um mundo onde amor é fraqueza, aliança é guerra e promessas são moeda. Elena não merece isso. Ela merece paz, não esse teatro de poder que minha família chama de dever. Eu a amo demais pra prendê-la nisso. Então eu vou embora. Sem carta. Sem desculpa. Ela vai chorar hoje... mas vai sorrir de novo. Livre. Viva. Longe de mim."
O terno estava pronto. Alinhado. Escuro como a decisão que ele ainda fingia não ter tomado. A gravata repousava sobre a cadeira, imóvel, esperando por um homem que não queria mais vestir aquele papel. O espelho diante dele refletia um noivo. Mas por dentro, Heitor se sentia um desertor.
Do lado de fora, o sol já dourava os telhados da propriedade dos Montez. Os músicos provavelmente afinavam os instrumentos, os convidados começavam a se acomodar e Elena... Elena devia estar sorrindo, sem saber que ele não iria.
Ele passou as mãos no rosto, como se pudesse esfregar a dúvida para fora da pele. Mas a dúvida não era dúvida — era certeza. Uma certeza amarga, cruel, mas inevitável.
Ele a amava. Isso era o problema.
Se não amasse, teria casado com ela com a frieza que seu pai sempre demonstrou nos negócios. Seria fácil. Uma união de interesse, como tantas. Mas Elena era diferente. Ela não sabia o quanto a família dele era suja. Nem imaginava as negociações nas sombras, os favores cobrados com sangue, as alianças que terminavam em ruínas.
Se a levasse com ele, ela deixaria de ser luz.
Heitor olhou para a porta entreaberta. Bastava sair. Não olhar pra trás. Nem dar explicações. Palavras, naquela hora, só trariam mais dor. O silêncio seria mais cruel — mas também mais seguro.
Respirou fundo. Pegou a chave do carro, ignorando o celular que vibrava sem parar sobre a mesa.
O nome dela piscava na tela.
Elena.
Por um segundo, quase atendeu.
Mas desligou o aparelho, enfiou no bolso do paletó que jamais usaria e saiu, deixando pra trás o som abafado dos sinos que já começavam a tocar.
O banco de trás do carro ainda tinha pétalas esquecidas da última entrega que mandou para ela. Um buquê que Elena nunca recebeu — chegou tarde demais. Assim como ele.
Heitor dirigia sem destino. Cada quilômetro era uma sentença. Cada curva, uma covardia. O motor rugia baixo, mas o silêncio dentro dele era mais alto do que qualquer coisa.
A estrada cortava a cidade como um bisturi, e ele se sentia aberto por dentro. Vazio, mas sangrando.
No rádio, uma música qualquer tocava, descompassada com o momento. Ele desligou.
Não queria mais sons.
Já tinha abandonado a única melodia que fazia sentido: a voz dela.
Ele imaginava, contra a própria vontade, como Elena reagiria. Primeiro a confusão. Depois o pânico. Por fim, o silêncio. O tipo de silêncio que nasce da dor que não se grita — só se engole.
Ele se odiava. Mas não voltaria.
Porque amar Elena era justamente o que o obrigava a deixá-la.
O dia do casamento (ponto de vista da Elena)
Elena sempre imaginou que o dia do casamento seria mágico.
Não perfeito — ela não era ingênua — mas cheio de significado. Cheio dele.
O vestido pesava mais do que imaginava, não pelo tecido, mas pelas expectativas costuradas ao longo dos meses. Ela mal conseguia respirar dentro daquele corpete justo, mas achava que era ansiedade. Nunca suspeitou que fosse presságio.
As madrinhas riam ao fundo, ajustando flores, tirando fotos. A mãe ajeitava um fio solto de cabelo com olhos marejados. Orgulho. Emoção. Nenhuma delas sabia. Nenhuma delas via o vazio que começava a se formar, discreto, como uma rachadura invisível.
— Já tá na hora? — perguntou, sorrindo, tentando não tremer.
— Quase, meu bem — respondeu o pai, com a gravata torta e o coração inchado.
Mas o “quase” virou “ainda não”.
E o “ainda não” virou silêncio.
Primeiro vieram os olhares. Depois os cochichos. O cerimonialista, nervoso, com o celular no ouvido e a testa úmida. Elena esperava que fosse apenas um atraso. Um pneu furado. Um engano no horário. Ele ia chegar. Ele sempre chegava.
Só que não chegou.
E então ela soube.
Não porque alguém disse.
Mas porque o tempo disse.
Porque o mundo parou de girar, e ela ainda estava ali, no centro de tudo, com flores demais nas mãos e ninguém pra recebê-las no altar.
O silêncio caiu como uma chuva pesada. A mãe desabou. O pai cerrou os punhos. E Elena?
Elena apenas ficou de pé.
Como uma estátua.
Como uma mulher que foi abandonada diante de todos, mas que não gritaria — não naquele momento.
Ela apenas pediu, com voz firme, que retirassem o véu.
E saiu.
Com os olhos secos, o queixo erguido e o coração em frangalhos.
Ainda o dia do casamento — horas depois
A casa estava vazia. Vazia de gente, de ruídos, de vida.
O vestido estava jogado sobre a cama como um corpo sem alma, e Elena, sentada no chão do próprio quarto, ainda usava o sapato de noiva em um pé só. O outro tinha sido chutado longe no corredor, entre a raiva e o colapso.
Os gritos da mãe já haviam cessado. Os consolos da tia, também. As palavras secas do pai — “Ele não merecia você” — ficaram presas no ar como fumaça de um incêndio que ninguém apagou.
E então o mundo silenciou.
E ela chorou.
Não o choro bonito das novelas. Não um soluço delicado. Mas um desabamento completo. Um som rouco, primitivo, de alguém que não sabe mais onde dói porque dói em tudo.
Ela não chorava só por ter sido deixada no altar. Chorava por tudo que veio antes. Por cada detalhe que preparou achando que teria com quem dividir. Por cada promessa muda que viu nos olhos de Heitor. Por todas as vezes em que acreditou que o amor era suficiente.
— Por quê? — sussurrou, encarando o vazio à sua frente. — Por que você não veio?
Mas a pergunta ficou no ar, sem resposta, como tantas outras que ela faria nos dias seguintes, nos meses seguintes, nos anos seguintes.
Ela se arrastou até o espelho e encarou o que restava de si. A maquiagem borrada, os olhos vermelhos, o batom apagado.
“Você ainda parece linda”, ela ouviu em pensamento. Uma memória da voz dele, doce e distante.
Ela sorriu. Um riso quebrado. Quase um soluço.
Depois apagou as luzes, deitou no chão frio do quarto e deixou a dor vir inteira.
Sozinha, pela primeira vez, não como noiva.
Mas como uma mulher traída não só por um homem,mas por um futuro que ela jamais teria.
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Atualizado até capítulo 56
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