Entre o Sacrifício e a Fé
O acampamento já se agitava com os preparativos da partida. Panos dobrados, cestos de raízes e carne seca divididos, crianças embaladas em cobertores remendados. Ninguém discutia. Ninguém reclamava. Quando Lisa falava, as pessoas apenas se moviam.
Mas enquanto os outros carregavam o pouco que possuíam rumo ao sul, Lisa tomou o caminho oposto.
Silenciosa como a brisa da madrugada, voltou por entre as árvores — um quilômetro floresta adentro. Seus olhos varriam cada tronco, cada galho caído. Conhecia aquele terreno como poucos. Sabia onde o solo afundava, onde o musgo escondia pedras, onde um passo em falso poderia se tornar uma armadilha.
E foi isso que fez.
Montou laços com raízes torcidas, armadilhas de queda com galhos camuflados, estacas improvisadas cobertas com folhas. Sabia que para bestas como os rastreadores do Rei aquilo não era mais do que um incômodo. Mas um incômodo bem colocado podia render horas preciosas.
Horas que poderiam salvar vidas.
Ao terminar, respirou fundo e fechou os olhos. A noite ao redor estava fria, mas dentro dela queimava o peso da responsabilidade.
— Que Deus guie nossos passos... — murmurou, encostando a mão em uma árvore.
— Que não permita que este povo seja destruído de forma tão baixa... tão cruel...
— Que se for para alguém perecer... que seja eu, e não eles.
Por um momento, tudo pareceu calmo. A floresta escutava.
Ela se virou, agora com pressa, e começou a correr de volta. A partida já devia estar próxima. Ela não podia se atrasar. Crianças e velhos esperavam sua mão firme. O grupo não sobrevivia sem ela.
E no rastro que deixava para trás, a floresta preparava o campo para atrasar a morte — ainda que por um fio de esperança.
Histórias Para Iluminar o Caminho
A trilha era silenciosa, exceto pelo som de pés sobre folhas molhadas e a respiração ritmada de dezenas de pessoas avançando pela escuridão. Lisa caminhava no centro do grupo, rodeada por crianças e idosos, com os olhos sempre atentos à frente... e aos arredores.
Mas mesmo no silêncio, o medo era pesado. Sentia nos passos das crianças, no jeito como os pequenos apertavam as mãos das mães, nos olhos que se negavam a dormir mesmo no colo.
Então, ela começou a falar.
— Sabiam que existe uma floresta onde as árvores cantam?
As crianças a olharam, surpresas.
— Cantar mesmo? — perguntou um menino magro, cobrindo os ombros com um pedaço de pele de cervo.
— Sim. Dizem que, em noites de lua cheia, as folhas brilham como prata, e se você fechar os olhos... pode ouvir as árvores contando segredos antigos. Histórias de dragões dormindo sob a terra. De fadas que voam com luzes presas nas asas.
— Isso é de verdade? — uma garotinha sussurrou, de olhos arregalados.
Lisa sorriu.
— Tudo que a gente acredita com força o bastante, vira verdade em algum lugar.
Os sorrisos começaram a surgir, tímidos, mas reais. O medo não desapareceu, mas deu espaço para outra coisa: imaginação. Esperança, ainda que embrulhada em fantasia.
Ela sabia que aquelas histórias não mudariam o mundo. Mas por algumas horas, poderiam salvar a infância daquelas crianças.
E isso, para ela, já era vitória.
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Parte II — O Sonho do Rei
Longe dali, nas profundezas de uma antiga fortaleza envolta em neblina eterna, Val’Khar dormia.
O sono era algo raro para ele. Normalmente inquieto, tomado por lembranças e guerras passadas, mas naquela noite… foi diferente.
Ele sonhava.
E no sonho, havia ela.
Uma mulher de cabelos brancos como geada sob o luar. Pele pálida como pedra sagrada. Olhos verdes que o atravessavam com ternura e riso. Ela não falava — apenas sorria. Um riso leve, verdadeiro, capaz de derreter a armadura de séculos que ele vestia na alma.
Ele a olhava, e tudo dentro dele… aquecia.
Foi a primeira vez em séculos que ele sentiu. E o sentimento o atingiu como um trovão: alegria.
O mesmo calor que um dia só sentira ao lado de sua Rainha. Daquela com quem compartilhara o Laço da Lua, um vínculo sagrado que apenas os escolhidos da Deusa conheciam.
Mas a mulher no sonho não era sua Rainha.
Ele acordou.
Sentado em sua cama de pedra e couro, olhos ardendo na escuridão. Respiração pesada. Corpo tenso. Coração... estranho.
"Foi só saudade," tentou dizer a si mesmo.
Mas não acreditava.
Porque dentro dele, algo rugia — um eco antigo, primal, que reconhecia a essência daquela mulher no sonho. E isso o deixava inquieto. Confuso. Frágil de um jeito que ele odiava.
— Quem é você...? — murmurou para o vazio da noite.
E a lua, escondida entre nuvens densas, nada respondeu.
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Atualizado até capítulo 40
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