O Beijo Que Me Mantém
Seis. Seis dias sem beijar ninguém. Contei os dias na minha cabeça, como quem conta os grãos de areia que faltam para a ampulheta virar. Sexta-feira, ensaio geral da peça, e meu corpo já começava a me trair, uma névoa pesada atrás dos olhos, os músculos dormentes, como se alguém tivesse desligado minhas baterias.
— Ana, você tá parecendo um zumbi — Marian deu um peteleco na minha testa, sorrindo.
A maçã do rosto dela estava rosada, o cabelo preso num coque perfeito. Sempre a protagonista. Eu, deitada no sofá do canto da sala, mal conseguia me mexer.
— Tô bem, só com sono — menti, puxando o vestido amassado da minha personagem coadjuvante. A Amiga da protagonista. Até no teatro eu era secundária.
O teatro da faculdade cheirava a poeira e tinta fresca. A professora Erika, de óculos redondos e aquela cara de quem nunca sorriu na vida, batucou o roteiro na cadeira.
— Cena três, o confronto! Marian e Davi, lembrem que o beijo é no fim, depois da fala "eu escolho o mundo".
Davi, o galã de sorriso fácil que interpretava o interesse romântico da Marian, acenou com a cabeça. Eu mordi o lábio. Um beijo. Só um. É tudo que preciso.
— Professora — a voz saiu mais alta do que eu queria —, e se a amiga da protagonista tivesse um momento com o Vicente antes do confronto? Um beijo inesperado pra aumentar a tensão...
A sala ficou em silêncio. Vicente, meu par romântico na peça (um coadjuvante com três falas), arregalou os olhos. Os outros alunos do curso de teatro, todos reunidos para os ensaios finais, me olharam com choque e suspeita, provavelmente questionando a minha ousadia inesperada. Até entendia a surpresa do momento, visto que, do ponto de vista deles, minha pergunta partia do nada e sem razão.
— Absolutamente não. — a professora cruzou os braços.
— O roteiro não é sugestão, Ana.
Mas meu corpo latejava. O sétimo dia estava chegando. Eu mal conseguia ficar em pé. Não podia esperar e perder a oportunidade de usar a peça para minha salvação. Então, sem mais delongas a professora pediu para começar a cena.
Marian recitou suas falas com lágrimas artificiais, Davi segurou os ombros dela. Eu respirei fundo.
— Eu não deixo você ir. — Vicente disse, como combinado.
Eu devia responder: "É minha decisão". Em vez disso, agarrei seu rosto e o beijei. Foi rápido, mas suficiente. O choque percorreu minha espinha, senti o gosto da bala de hortelã dele. O calor voltou a inundar minhas veias, como café quente derramado numa xícara vazia. Vicente me empurrou, escandalizado.
— ANA! — a professora gritou.
Marian riu, depois cobriu a boca. O resto do elenco ficou entre o horror e o fascínio.
— Fora do meu teatro — a professora apontou pra porta, trêmula.
— Você sabia que essa cena não estava marcada!
Engoli em seco. Valeu a pena? Sim, pela minha vida. Mas a vergonha veio junto. Saí quase tropeçando, mas já sentia os dedos formigarem, a névoa se dissipar, minha energia subindo como se eu tivesse tomado um choque.
— Você enlouqueceu de vez? — Marian me arrastou pro banheiro depois do ensaio, rindo, mas com a testa franzida.
— A professora Erika vai te matar!
Encostei na pia, me olhando no espelho. Meus olhos já estavam menos opacos.
— Precisava fazer isso.
— Precisava beijar o Vicente?
Fechei os olhos.
— Se eu ficar sete dias sem beijar alguém... eu desligo.
Marian parou de retocar o batom.
— ...O quê?
Foi num banco do jardim da faculdade, sob uma árvore que pingava flores roxas, que contei tudo para minha melhor amiga. Não era o banheiro o melhor cenário para o que eu tinha para revelar.
— Faz um ano. Lembra daquela festa na casa do Luca, depois da formatura? Eu tava horrível, quase desmaiando. Aí o Luca me beijou. Foi como tomar um remédio.
Marian me olhou como se esperasse uma piada.
— No começo achei que era paixão, sabe? Adrenalina. Mas aí os sintomas voltavam. Fiz teste: ficava sem beijar e virava um morta-viva. Beijava alguém e voltava ao normal. Até tentei me beijar no espelho — dei uma risada amarga.
— Mas, descobri que precisava ser real.
— Ana, isso não é normal — Marian abriu e fechou a boca.
— Eu sei! — enterrei o rosto nas mãos. — Mas é real. Já li tudo sobre dependência emocional, hormônios, placebo... Nada explica.
Um vento frio passou. Marian segurou minha mão.
— Você está falando sério?
Olhei pra ela.
— É muito sério! Eu pareço brincar, por acaso?
— Se isso é sério, deve ser uma doença estranha. — Marian encolheu os ombros, mas seus olhos estavam sérios.
Depois, quebrou o clima:
— Onde a gente procura um manual de "pessoas que precisam de beijos pra viver"?
Sorri, agradecida por ela não ter duvidado de mim. Mas, claro, não escapei das piadinhas.
— Assanhada. — Marian riu, cutucando meu lado.
Mas eu sabia que, por trás da brincadeira, ela estava preocupada. E eu também. Eu estava em um ciclo de necessidade estranha. Eu me perguntava se não podia ter acontecido esse problema (como eu costumava chamar) com outra coisa mais fácil, por exemplo, com um abraço em vez de beijo na boca.
Por que tinha que ser logo com um beijo? Isso era muito difícil. Mas, depois de conversar por mais um tempo com Marian, eu me sentia melhor porque podia contar com o apoio da minha amiga. Ela sempre era compreensiva e gostava de me ajudar.
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Atualizado até capítulo 31
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