PRAZER E OUTROS RISCOS
Vivian
A luz invade o quarto sem pedir permissão. O sol atravessa a janela como um tapa no rosto, quente demais, claro demais. Acordo com a boca seca, o gosto de álcool e cigarro grudado na língua. Ainda estou bêbada — ou pelo menos, é o que o zumbido na minha cabeça insiste em me lembrar.
Viro para o lado e lá está ela.
Loira. Bonita. E completamente esquecida.
Não lembro o nome. Nem se ela me contou. O rosto me parece vago, uma mistura de todas as outras que já passaram por aqui. Ela dorme profundamente, com um lençol jogado de qualquer jeito sobre o corpo nu. Uma cena bonita... e desconcertante.
Me arrasto até o banheiro.
A água gelada me acerta como um soco no estômago, mas eu preciso disso — preciso apagar o que sobrou da noite passada, preciso limpar esse gosto de ausência.
Quando saio, ela está de pé, vestida, me olhando com um sorriso preguiçoso e cheio de certezas.
— Você quer café? — pergunto, tentando parecer menos estranha do que sou.
Ela apenas sorri e responde:
— Não. Ontem foi bom. Quero outra vez.
E então ela vai embora. Simples assim. Sem número, sem beijo, sem nada.
Fico parada no meio da sala, enrolada na toalha, com o corpo ainda quente e a alma fria.
Sorrio sozinha. Um sorriso torto, vazio. Porque, honestamente, eu não lembro de nada.
Pego uma caneca, passo o café mais forte que consigo suportar e sento na bancada, observando a bagunça do meu loft.
O lugar é uma extensão de mim:
Um sofá manchado de vinho, almofadas jogadas no chão, discos de vinil empilhados ao lado de uma vitrola antiga, a garrafa de uísque pela metade esquecida no canto. A cozinha americana se mistura com a sala, e o quarto está separado por uma meia parede de tijolos aparentes. Tudo aberto. Tudo visível.
Nada no lugar.
Exatamente como eu.
Passo o resto da manhã colocando alguma ordem no caos. Não é exatamente limpeza — é sobrevivência. Um ritual quase automático pra fingir que tudo está bem.
E então, finalmente, me entrego ao sono.
Apago no sofá, ainda com o som de algum jazz antigo rodando em vinil.
Durmo o dia todo, como sempre.
Acordo já no fim da tarde, com a cabeça um pouco mais leve e a garganta pedindo café de novo. Faltam menos de sessenta minutos pra eu estar atrás do balcão, sorrindo para estranhos.
Tomo banho, passo meu batom vinho, calço minhas botas pretas, ajeito o cabelo curto com um pouco de cera. O espelho me devolve uma versão de mim que aprendi a vestir: rock, retrô, pronta pra encarar a noite como se ela fosse minha aliada.
Pego minha jaqueta de couro, subo na moto e sigo para o Neon Bar, o bar que é boate, o bar que é tudo — meu palco, meu esconderijo, minha rotina silenciosa.
Estaciono na lateral, entro pelos fundos e sou engolida pela penumbra familiar, as luzes de LED roxas, a batida baixa de um eletrônico melancólico. Me posiciono atrás do balcão, coloco o pano de apoio no ombro e dou o primeiro sorriso da noite.
A primeira dose é sempre para os outros.
A segunda, talvez, pra mim.
Já tinha perdido as contas de quantas bebidas preparei naquela noite. Vodka com energético, mojitos, caipirinhas mal dosadas, e alguns clientes que queriam mais minha atenção do que o álcool em si.
É sempre assim: copos indo e vindo, vozes altas, risadas exageradas. Eu só flutuo no meio da confusão, no piloto automático. Até que ela aparece.
Uma ruiva. Cabelos longos, pele quente, olhos cansados.
Senta-se no balcão como quem está caindo do mundo.
— Shot de tequila, por favor. — a voz dela é firme, mas falha nas bordas.
Sorrio de leve, habituada aos pedidos desesperados.
Sirvo a tequila, que ela vira como se fosse água.
— Outro. Melhor... dois.
Arqueio a sobrancelha, mas obedeço.
Enquanto coloco sal e limão ao lado dos copos, comento:
— Vá com calma. A noite nem começou, mocinha.
Ela me encara. Os olhos dela ardem — vermelhos, magoados, perigosos.
— Fui despejada da casa da minha amiga. E agora preciso voltar pra casa dos meus pais. Você acha mesmo que eu devia ir com calma? Eu tô queimando de raiva.
Ela diz isso como quem cospe a verdade. Crua. Sem verniz.
Enquanto ela fala, viro de lado para preparar um Manhattan para um outro cliente. O bar gira ao redor, mas meus ouvidos seguem nela.
— É tão ruim assim morar com seus pais? — pergunto, sem julgamentos. Só curiosidade.
Ela baixa um pouco o tom. A voz quebra, mas o olhar não desvia do meu.
— É. — responde.
Simples, seco, carregado de história.
— Porque lá eu não tenho liberdade. Com a minha amiga, eu podia ser quem eu quisesse. Dormir tarde, sair quando quisesse, transar quando bem entendesse... Agora, volto a ser a filha perfeita que nunca fui. Aliás... você conhece alguém que queira dividir o aluguel?
Termino de encher um copo de gim tônica e balanço a cabeça.
— Não conheço. — respondo com honestidade.
Ela solta um suspiro alto, visivelmente frustrada. Bate de leve o copo vazio na madeira do balcão.
— Que saco não ter dinheiro... — e me olha como se estivesse prestes a fazer besteira. — Você mora com alguém?
— Não. — respondo, rindo. A pergunta dela me diverte pela urgência desesperada.
— Então... divide comigo o apartamento. Eu tô desesperada, me ajuda!
Dou uma gargalhada. Alta. Verdadeira.
— E se eu for uma psicopata? Vai que eu queira te matar enquanto você dorme.
Ela também ri, mordendo o lábio inferior.
— Não importa. Desde que eu continue longe dos meus pais, consiga estudar e trabalhar, pode até tentar. — sua voz quebra no fim, como se a força que ela usou para brincar desaparecesse num instante.
A expressão dela muda. Fica apagada. Como se alguém tivesse apagado as luzes dentro dela.
— Qual é seu nome? — pergunta, mexendo o último gole do shot e chupando o limão de forma quase teatral. — É a primeira vez que venho aqui.
— Vivian. — respondo. — E o seu?
— Sabrina. Mas pra você, pode me chamar de “a louca desesperada por um teto”.
Ela ri da própria piada, e eu sorrio junto, sem conseguir evitar. Tem algo nela que me puxa. Talvez o jeito escancarado de não esconder o caos. Talvez os olhos, que tentam fingir força, mas estão implorando por colo.
Antes de sair, ela pega uma caneta da bolsa e anota algo num guardanapo.
— Caso fique sabendo de alguém que queira dividir o apê... fala de mim. — entrega o número e desliza o papel pelo balcão até minha mão.
Guardo no bolso da calça, sem prometer nada.
Mas respondo, só pra não deixar o silêncio pesar:
— Eu moro num loft. A gente não teria privacidade.
Ela dá um sorriso de canto. Não de decepção — de aceitação.
— Obrigada, mesmo assim. — murmura, quase num sussurro que roça os meus ouvidos.
E então se vira, desaparecendo no meio da multidão como se fosse parte da fumaça e do neon.
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Atualizado até capítulo 34
Comments
🦋 Fuyuki 🐺
Gostei do primeiro capítulo, vou colocar nos favoritos pra ler quando tiver um tempinho. Parabéns pela história incrível, autora! ❤️🩹🦋🐺
2025-06-04
0
🦋 Fuyuki 🐺
Eu adoraria ter uma "psicopata" como você na minha vida /Proud//Chuckle/
2025-06-04
1
Maria Andrade
estou começando a ler agora, já estou gostando
2025-05-29
1