o marquês e a maninha

Rio de Janeiro, 1806

O sol beijava os telhados da chácara dos Marinho quando cheguei com minha mãe para o chá da tarde, como de costume às quartas. A casa, de janelas abertas e corredores floridos, parecia respirar junto com as estações. O cheiro de pão de ló recém-saído do forno invadia o ar, e as vozes suaves das mulheres da casa se misturavam às risadas distantes dos rapazes no quintal.

Minha mãe, dona Angela, era inseparável da madrinha Karina, desde os tempos em que ainda corriam descalças pelas ruas de paralelepípedos da Lapa. O mesmo laço que unia as duas agora ligava nossas famílias como se fossem uma só. José e João, seus maridos, haviam montado juntos uma empresa de exportação de café, que crescia a olhos vistos. Todos na região sabiam: onde houvesse um Marinho, haveria também um Nunes. E vice-versa.

A amizade entre as famílias era quase lendária. Dizem até que Dom Pedro já ouvira falar dos laços entre as matriarcas quando passou certa vez pela fazenda de Petrópolis. Mas nenhuma história era mais minha do que a que se desenrolava toda vez que eu colocava os olhos nele: o filho único dos Marinho, o herdeiro, o futuro marquês.

Jordan.

Três anos se passaram desde o casamento de minha irmã Joyce, e o menino travesso que implicava com meu laço de fita branca agora se transformara em um jovem de quase dezoito anos, com a postura ereta, sorriso fácil e os olhos mais castanhos que já vi na vida. Para todos, ele era como um irmão mais velho para mim. Para mim... ele era tudo.

— Tá espiando o quê, Maninha? — a voz dele soou às minhas costas, com aquele tom brincalhão que me fazia querer revirar os olhos e, ao mesmo tempo, sorrir.

— O céu, Cocada. Só o céu. — respondi, cruzando os braços.

— Ah, bom. Pensei que fosse meu rosto perfeito. — Ele piscou e se jogou ao meu lado no banco de madeira sob a pérgola coberta por buganvílias.

Eu ri, mesmo tentando não dar bandeira. Ele me chamava de Maninha desde que ouviu minha mãe me repreender por tentar subir em uma árvore com meu vestido novo. Disse que me faltava um irmão para me controlar, e ele se voluntariou sem hesitar. Desde então, virou meu protetor, meu confidente, meu tormento.

— E então? — perguntei, fingindo desinteresse. — Seu pai finalmente o levou ao baile?

— Levou. — ele respondeu, inflando o peito com exagero. — Afinal, é chegada a hora de exibir o futuro marquês da família Marinho aos olhos da sociedade.

Revirei os olhos, mas mantive o sorriso.

— E como foi a experiência? Já encontrou sua futura marquesa?

Ele riu alto, aquele riso de quem ainda não se levou muito a sério.

— Dancei com duas moças. Uma pisava mais que um cavalo bravo, e a outra cheirava a lavanda ao ponto de me fazer espirrar. Mas sobrevivi. E você teria rido da minha cara, Fubá.

— Por que ainda me chama assim?

— Porque quando a gente se conheceu, você era só uma menininha com cheiro de bolo de milho e covinhas enormes nas bochechas. E continuou com as covinhas... — ele apertou uma, e eu me afastei, disfarçando o rubor. — Fubá combina contigo.

— Então tá, Cocada. — respondi, cruzando as pernas e olhando para o jardim como se o destino estivesse escondido entre as hortênsias.

Ele era assim. Sempre cheio de graça, como se a vida fosse um piquenique. Nunca percebia como minhas mãos tremiam quando ele me tocava, ou como minha garganta travava quando falava de outras moças. Para ele, eu era só a irmãzinha da melhor amiga de sua mãe. Só que eu não era mais aquela menina com fita branca no cabelo. Aos quinze, meu corpo já tomava formas que minha mãe vivia mandando cobrir com xales e vestidos fechados.

Jordan não notava.

Ou fingia não notar.

Fiquei um tempo em silêncio, ouvindo as cigarras. Ele também.

— Clara! — gritou Joyce da varanda. — Venha cá um instante.

— Já vou! — respondi. E quando me levantei, Jordan segurou meu pulso de leve.

— Ei... você tá bem?

Assenti rápido demais.

— Estou ótima.

Ele me soltou, mas os olhos continuaram em mim. Andei até a varanda, onde Joyce me esperava com um sorriso cansado.

— Queria te contar antes que soubesse por aí — ela disse em voz baixa, me puxando para dentro. — Estou grávida. Quatro meses.

O mundo ficou em silêncio por um instante.

— Vai ser tia, — ela sussurrou.

Eu abracei minha irmã com força, mas meus olhos procuraram instintivamente o jardim, onde Jordan ainda estava sentado, agora distraído com uma laranja que descascava.

— Vai ser estranho vê-la com uma criança nos braços. — murmurei. — Você sempre foi tão elegante... tão séria.

— Engraçado — ela respondeu com um sorriso —, foi exatamente o que eu pensei quando descobri.

Ri com ela. Mas, por dentro, algo se agitava. O tempo não esperava ninguém. Nem mesmo uma menina com covinhas que amava o herdeiro da casa ao lado.

Talvez um dia ele acorde.

Talvez um dia o Marquês veja que a menininha das covinhas agora é mulher.

Mas, até lá, eu esperarei.

— Talvez um dia — sussurrei para mim mesma, com um fio de esperança sufocado no peito — ele vá acordar.

E me ver de verdade.

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