1803 — Rio de Janeiro
Narrado por Jordan Marinho
Quando deixei São Paulo, deixei também minha sombra para trás. A casa grande com paredes de cal, o aroma da terra molhada após as chuvas e o som constante dos cavalos no pátio da frente tornaram-se lembranças que se desvaneceram lentamente no ritmo das rodas da carruagem. Meu pai dizia que o Rio de Janeiro era o coração do Império, que ali pulsavam as grandes decisões e os olhares mais severos da sociedade. Eu, no entanto, sentia apenas o calor — não apenas do clima, mas do desconhecido que me envolvia a cada esquina.
— “Endireite os ombros, Jordan. Marquês algum se curva para o mundo.” — repetia meu pai, o Marquês João Marinho, com voz firme e sem margem para réplica.
Minha mãe, Karina, era diferente. Havia doçura em sua voz, mesmo quando o mundo parecia duro. Ela dizia que minha sensibilidade era uma virtude, não uma falha. Foi ela quem me convenceu a vir ao casamento da filha de sua amiga de infância — a tal senhora Ângela Nunes, agora duquesa, casada com o poderoso José Nunes.
Quando adentrei o salão iluminado por centenas de velas e ladeado por colunas douradas, fui tomado por uma estranha reverência. Era como se tudo ali estivesse vivo — os espelhos, os tecidos, as taças tilintando em mãos perfumadas, os risos abafados por leques de renda. A música ecoava em violinos delicados, e damas deslizavam pelo piso encerado como se não tocassem o chão.
Vi a noiva no alto da escadaria. Joyce Nunes — agora duquesa Joyce Souza. Ela estava esplêndida. Seu vestido branco parecia ter sido tecido pela própria brisa do mar, e sua presença irradiava a paz de quem sabia exatamente onde deveria estar. Ao seu lado, o duque Daniel Souza, robusto, simpático e risonho, apertava mãos com confiança e naturalidade. Eu, que tinha apenas quatorze anos, me perguntei se um dia teria aquele mesmo ar firme.
Mas então… eu a vi.
Não era a noiva que me tirou o fôlego, nem os reflexos das joias que adornavam as senhoras em volta. Era uma menina, parada à beira do salão, segurando as luvas nas mãos gordinhas como se não soubesse bem o que fazer com elas. Seus cabelos castanhos claros, cacheados, estavam presos com uma fita branca que balançava conforme ela se movia. Seu vestido tinha o tom delicado do chá de pêssego. Ela ria. E como ria. Gargalhava para as flores, para os doces, para as pessoas que passavam.
— “Quem sorri tanto assim num salão?” — pensei, num misto de estranheza e fascínio.
Havia algo nela que não pertencia àquele lugar — não por inadequação, mas por essência. Era como se sua presença iluminasse um canto do salão que antes estava apagado.
Minha mãe me puxou discretamente para o lado, sorrindo como quem guarda um segredo precioso.
— “Jordan, permita-me apresentar a senhora Ângela Nunes, minha amiga dos tempos de Lisboa. Esta é sua filha mais nova… Clara.”
A senhora inclinou levemente a cabeça, com a graciosidade de uma dama que conhece sua posição no mundo. E então, Clara Nunes estendeu-me a mão, com os olhos ainda brilhando do riso anterior.
— “É um prazer conhecê-lo, senhor Jordan.” — disse, tentando imitar o tom sério das damas mais velhas, mas sua voz traiu a juventude.
— “O prazer é meu… senhorita Clara.” — respondi, com um pequeno nó se formando em minha garganta.
Ela me encarou por um segundo, e naquele olhar inocente e doce, senti um calor estranho no peito. Um leve sopro. Como se o ar naquele salão imenso tivesse se concentrado apenas entre nós dois.
Ela tinha doze anos. E mesmo assim, naquele instante, tive a impressão de que minha solidão tinha encontrado abrigo. Não pelo romance — isso eu nem compreendia ainda —, mas pela presença. Pela certeza de que, com ela ali, vizinha, próxima, eu não estaria tão só neste novo e ruidoso Rio de Janeiro.
Durante o resto da noite, segui-a com os olhos. Vi quando ela roubou um docinho da mesa enquanto ninguém olhava. Quando tropeçou no tapete e fingiu que fora um passo de dança. Quando puxou a manga da mãe para cochichar algo que as fez rir às escondidas.
“Ela é um raio de sol no meio desse teatro de formalidades.” — pensei.
Não me aproximei novamente. Não naquela noite. Mas quando voltamos para casa, e meu pai perguntou o que eu achara do Rio, limitei-me a dizer:
— “Talvez não seja tão ruim quanto pensei.”
Pois algo — ou melhor, alguém — havia transformado aquele baile em algo inesquecível.
E embora eu ainda não soubesse o nome da sensação, o destino já soprava, silenciosamente, o laço que se formava entre nós.
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Atualizado até capítulo 30
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