Passou mais uma semana naquele ritmo tenso no Morro da Coruja. Aquele clima pesado no ar, tá ligado? Ninguém falava abertamente o que tava rolando, mas geral sentia que tinha alguma coisa errada, fora do lugar. O Caju, lá na área do tráfico, andava mais pilhado que o normal. Nervoso, distribuindo bronca e tapa nos ‘vapor’ por qualquer parada errada, olhando torto pra todo mundo. Do outro lado, o Sargento Borges tava na mesma vibe, só que mais quieto, mais sinistro. Andava desconfiado até da própria sombra, sempre com a mão perto do revólver na cintura, suando frio mesmo na noite mais fresca. Aquele encontro no beco tinha mexido com a cabeça do miliciano.
E a Vó Anahi? Ah, a véia continuava firme no ritual dela, mermão. Quem passasse perto do barraco dela altas horas da noite – se tivesse coragem – podia jurar que ouvia um canto baixo, que nem reza antiga, e sentia um cheiro forte de mato queimado misturado com terra molhada. A energia ali tava cada vez mais densa. Dentro do barraco, à luz da lamparina, a cena era mais braba ainda. Agora ela tinha fincado umas penas de urubu, daquelas bem pretas, na lama escura que usava. E tinha uns fios de cabelo – de quem seriam, meu pai? – enrolados com força nas bonequinhas de palha que representavam seus alvos. A véia não brincava em serviço.
A parada aconteceu pra valer numa noite de garoa fina. Sabe aquela chuvinha chata, insistente, que molha trouxa e deixa tudo com cara de mais triste ainda? Então. O Caju tava lá embaixo, na 'contenção' perto da entrada principal do morro, 'trabalhando' com mais dois vapores. Tinha acabado de dar um esculacho num moleque da 'atividade', um novinho que deu uma cochilada no posto de observação improvisado. Tava puto pra caraca, o Caju, xingando alto, cuspindo no chão, aquela marra toda.
De repente, mermão, sem mais nem menos, o poste de luz ali perto, aquele que já iluminava mal e porcamente o pedaço, começou a piscar. Falhou uma, duas, três vezes... e PFFT! Apagou de vez. Um breu quase total tomou conta da entrada da viela.
"Qualé?! Acabou a luz, porra?!" gritou um dos vapores.
"Foi apagão?!" berrou o outro, já acendendo a lanterna do celular, aquela luzinha branca e mixuruca que mal cortava a escuridão e a garoa.
Eles apontaram as luzes fracas pra onde o Caju estava um segundo antes, xingando o moleque. Nada. Vazio.
"Ô, Caju! Cadê tu, mané?!"
Silêncio. Só o barulho da garoa caindo e, de repente, pareceu que até o funk que tocava mais longe tinha ficado mudo.
Os caras ficaram boladões na hora. Começaram a chamar mais alto, a procurar ali em volta, nos becos próximos, com as lanternas tremendo na mão. "Caju! Ô, Caju!". Nada. Nem sinal do moleque marrento. Parecia que tinha evaporado no ar.
Até que um deles, o que tinha a lanterna mais forte, apontou pro chão bem onde o Caju estava parado antes de apagar a luz. E geral ficou de cara. De queixo caído, mermão.
O fuzil do Caju tava lá. No chão de terra batida e molhada pela garoa. Só que não tava normal, não. O bico tava coberto, todo enrolado nuns cipós grossos, verdes, viçosos, que pareciam ter brotado DO NADA ali do chão de terra e se enroscado na arma toda, apertando o metal frio como se fosse uma cobra verde. Umas folhinhas novas, de um verde brilhante, já apontavam entre as frestas do cano e da coronha. Uma cena de maluco, sinistra pra caralho. Ninguém ali, acostumado a ver de tudo naquele morro, nunca tinha visto uma parada daquela na vida. Cipó brotando do nada e abraçando um fuzil? Coé, mermão!
Lá no alto do morro, escondida na noite e na sua magia, no exato momento em que os vapores encontraram o fuzil enfeitado de mato, a Vó Anahi parou de cantar. Abriu os olhos bem devagar. Eram só duas fendas escuras na penumbra, mas pareciam brilhar por dentro. Um sorrisinho mínimo, quase invisível, repuxou o canto da boca dela por um segundo. Com a calma de quem sabe o que faz, ela pegou a bonequinha de palha que tinha os olhos marcados de lama preta – a que 'era' o Caju – e enterrou ela devagarinho na terra escura e úmida dentro do pote de barro antigo.
"Um já foi pra terra," ela sussurrou baixinho, só pra ela e pras sombras. A chama da lamparina pareceu piscar mais forte por um instante, como se concordasse.
A notícia, tu sabe como é em favela, né? Correu o morro mais rápido que fofoca de vizinha e áudio no zap. "O Caju sumiu!", "Levaram o Caju!", "Sumiu do nada!", "Deixaram só a arma dele toda enrolada no mato!". Virou o único assunto. O 'patrão' do Caju, o chefão do tráfico lá do alto, ficou boladão, puto pra caraca. Jurou vingança, achou que era caô dos 'alemão' do morro vizinho ou algum vacilo da milícia pra esquentar a área. Mandou os 'frente' dele vasculharem cada buraco, cada beco. Mas ninguém achou nem rastro do Caju. Só aquele fuzil sinistro largado lá, que depois de um tempo, ninguém teve nem coragem de tocar ou tirar do lugar. Virou um monumento bizarro ao medo.
O medo, aliás, começou a bater forte na rapaziada do tráfico. Que porra tava acontecendo ali? Se podiam fazer aquilo com o Caju, que era um dos linha de frente, podiam fazer com qualquer um.
E o Sargento Borges? Ah, mermão... Quando ele ficou sabendo da história do sumiço do Caju e, principalmente, do detalhe do fuzil com cipó brotando do chão, ele ficou branco que nem folha de papel. Aquele chiado no beco escuro... a palavra 'devolva' na língua estranha... o formigamento na mão... Agora o Caju sumindo e deixando um sinal bizarro da natureza pra trás... Mermão, ele ligou os pontos na hora. Aquilo não era guerra de facção. Não era operação da polícia. Era outra parada. Uma parada antiga, braba, e que parecia estar limpando o terreno. E ele tinha quase certeza de quem seria um dos próximos da lista. O suor frio escorreu pela testa dele de novo.
O povo do morro, o trabalhador, a dona de casa, a criançada... esse pessoal se trancou mais cedo em casa ainda naqueles dias. As mães puxavam os filhos pra dentro antes mesmo de escurecer direito. Nas biroscas e nos bares, o assunto era um só, sempre falado em voz baixa, olhando pros lados. "Foi macumba braba!", dizia um. "É coisa feita, com certeza!", afirmava outro. "Será que foi a alma de algum inocente que eles mataram e voltou pra cobrar?", especulava uma senhora benzedeira. A teoria sobrenatural ganhou força total. Mas o mais curioso é que ninguém ainda ligava os pontos até a Vó Anahi. Ela continuava sendo, pra geral, só a véia quieta, que fazia reza, dava chá de erva pra dor de barriga... Mal sabiam eles da força que aquela 'véia' carregava.
No barraco da Vó Anahi, a lamparina continuava acesa, vigiando a noite. A primeira parte da 'limpeza' tava feita. A energia ruim do Caju, a marra de bandido, a violência gratuita... tudo tinha sido absorvido, transformado em adubo pra terra sofrida do morro, devolvido pra quem de direito: a própria terra. A véia olhou então pra outra boneca de palha, aquela com a mão marcada pela lama preta, a que vibrava com a energia tensa do Sargento Borges. Ela pegou a boneca com cuidado, sentindo a vibração de medo e raiva que vinha dela.
A noite ainda era uma criança. E o serviço dela, mermão, tava longe de acabar. O Sargento seria o próximo a acertar as contas com a terra. Ela sentia. A terra clamava.
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Atualizado até capítulo 42
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