Anahí : A Fúria do Morro
Qualé, mermão, vou te mandar o papo reto sobre o Morro da Coruja, hein?. Quem olha de longe, lá da Zona Sul, mó cartão postal, né? Coisa linda, casa colorida subindo o verde. Mas sobe aqui pra tu ver. Quem mora aqui sabe que a parada é diferente. É funk no talo vinte e quatro horas? É. É vizinho gente boa que rala pra caraca? É também. Mas é tiro comendo solto quase todo dia, é os 'cara' do tráfico de bico na mão na esquina, é os 'homem' da milícia cobrando taxa até pra respirar. E a gente? A gente tá no meio, desviando de bala perdida e de perrengue, tá ligado? Mó sufoco.
E lá num canto mais antigo do morro, lá pra cima, onde o cimento remendado ainda briga pra não deixar a terra vermelha aparecer, tinha um barraco. Um barraco simples, mas que parecia mais antigo que os outros. Ali morava uma véia. Ou melhor, estava ali. Anahi, era o nome que quase ninguém mais lembrava. Pra geral ali da área, era só Vó Anahi, ou Tia Anahi pr'os mais chegados. Figura conhecida, mas ao mesmo tempo, mó mistério. Ninguém sabia direito a idade daquela mulher. Tu olhava pra ela, via as ruga de uns setenta, oitenta anos, talvez. Mas o olhar... ih, mermão, o olhar dela era outra parada. Um olhar fundo, pesado, de quem viu coisa que não tá em livro nenhum, de quem tava ali antes do primeiro tijolo ser botado naquele morro.
A Vó Anahi lembrava. Ah, se lembrava. Lembrava do Morro da Coruja quando nem nome tinha direito, quando era só mata fechada descendo até a lagoa lá embaixo. Onça pintada escondida nas árvores? Tinha. Jacaré tomando sol na beira do rio que hoje é valão? Tinha também. E os espíritos da floresta, os curupira, os caipora? Ih, mermão, esses eram vizinhos dela, parceiros de longa data. Ela manjava da língua das árvores, do segredo das pedras, do caminho do vento que subia da Baía de Guanabara trazendo cheiro de maresia e de história. Aquele chão ali, mesmo hoje coberto de barraco caindo aos pedaços, de beco sujo e vala negra, pra ela ainda era sagrado. Era a casa dela, dos ancestrais dela, há muito, muito mais tempo do que qualquer 'dono do morro', fosse do tráfico ou da milícia, podia sonhar em contar nos seus dias de vida bandida.
Só que a paciência da Vó Anahi, mermão, era que nem pedra: dura pra caraca, mas um dia racha. E naquele dia, o bagulho ficou doido de vez. Era fim de tarde já, aquela barulheira de sempre no morro: funk no último volume vazando das lajes, molecada batendo uma bola no campinho de terra improvisado, o helicóptero da polícia – o 'caveirão aéreo' – roncando lá no alto, de olho em tudo e em nada. Normal, né? Até que não foi mais.
De repente, AQUELE barulho. Rajada. Trá-trá-trá-trá-pá-pá! Perto. Perto pra caramba. Um dos tiros, desviado de alguma treta lá embaixo, veio zunindo que nem mosca varejeira e PÁ! Cravou na parede de madeira do barraco da Vó Anahi. Bem ali, do lado onde ela tava sentada numa esteira no chão, pitando seu cachimbo de barro e olhando o nada. A bala fez um buraco feio na madeira véia, levantou farpa pra todo lado. A poeira fina de dentro da parede caiu devagar. E o silêncio que veio logo depois da rajada foi mais sinistro que o barulho do tiro. Um silêncio pesado, carregado.
A Vó Anahi não se mexeu. Ficou ali, parada, olhando pro buraco na parede como se ele fosse um olho encarando ela de volta. O rosto dela, normalmente cheio de ruga que parecia mapa das alegrias e tristezas do morro, ficou liso de repente. Ficou duro que nem a pedra mais antiga da Gávea. E o olhar, aquele olhar véio pra caraca, que já tinha visto o Rio de Janeiro nascer e crescer, escureceu. Ficou frio. Chega.
Já era. A paciência da pedra tinha rachado. Chega dessa palhaçada, dessa guerra de otário, de moleque com fuzil na mão achando que é rei, de miliciano fardado ou à paisana achando que é dono da vida e da morte do povo. Chega de sujarem o chão sagrado dela com sangue, com medo, com choro de mãe. Aquele morro, a terra, o espírito do lugar... tudo ali tava pedindo paz há tempo demais. E se os 'homem' de um lado e do outro não sabiam dar, ela ia ter que dar. Do jeito dela. Do jeito antigo.
Naquela noite, quem procurou a Vó Anahi não achou. A porta do barraco tava fechada, a janela também. Ninguém viu ela sentada na porta, pitando seu cachimbo e vendo a noite cair sobre a cidade maravilhosa e ferrada lá embaixo.
Lá dentro, à luz amarelada de uma lamparina a querosene que fazia as sombras dançarem feito assombração, a véia começou a se mexer. Levantou umas tábuas soltas do assoalho e tirou de lá uns embrulhos de folha seca. Ervas com cheiro forte, cheiro de mato e de magia. Umas pedras escuras, lisas, que pareciam pulsar um calorzinho próprio na mão dela. Um pote de barro véio, cheio de uma terra preta, úmida, que com certeza não era dali do morro, não daquela parte maltratada pelo homem.
Ela limpou um canto do chão batido e começou a arrumar as coisas. Desenhou uns símbolos estranhos na terra com o dedo. E começou a cantar. Baixinho no começo, depois ganhando força. Uma língua áspera, gutural, cheia de estalo e chiado, uma língua que ninguém mais falava naquele morro – talvez nem na cidade inteira – há séculos e séculos. Era um chamado. Uma reza braba. Uma arrumação pra botar ordem na casa.
A energia dentro do barraco mudou na hora, ficou densa, elétrica, de arrepiar até quem não acredita em nada. Podia sentir no ar. A caça ia começar. Mas dessa vez, mermão, a caçadora era ela. E os 'bicho' que ela ia pegar, os 'brabos' do morro... esses nem desconfiavam do que tava vindo. O ritual da Vó Anahi tava só começando. A limpeza ia ser grande
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Atualizado até capítulo 42
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