A noite no Morro da Coruja engoliu o dia que já nasceu cinzento, mas dentro do barraco da Vó Anahi, a parada tava longe de ter paz. A lamparina a óleo continuava acesa, teimosa, lançando sombras compridas que dançavam nas paredes de madeira e barro. A véia nem piscava. O canto antigo que ela entoava agora era um zumbido baixo, constante, que parecia fazer o próprio ar do barraco vibrar devagarinho, como corda de berimbau tocada de leve. No chão batido, as ervas secas e as pedras escuras pareciam mais vivas na luz bruxuleante, quase respirando. Ela pegou um punhado daquela terra preta e úmida, tirada sabe-se lá de onde, e misturou com água da chuva que guardava num pote de barro antigo, fazendo uma lama escura e grossa. Energia pura, mermão. Coisa ancestral.
Lá fora, no labirinto de viela e beco, a 'vida' do morro seguia seu rumo torto. Na rua principal da 'boca de fumo', perto de onde o tiro tinha acertado o barraco da Vó, tava lá o Caju. Moleque novo, devia ter nem dezoito, mas já carregava a marra de veterano e um fuzil no pescoço que parecia maior que ele. Ria alto, cuspindo no chão, cercado por outros 'vapor' da atividade, se achando o dono do pedaço, o rei da cocada preta. Do outro lado do morro, na área já dominada pelos 'homem' da milícia, o Sargento Borges, um ex-PM expulso, agora miliciano da velha guarda, fazia a ronda dele. Recolhia o 'arrego' do comércio local. Cara fechada, pançudo, olhar de quem não confia nem na própria sombra, botando mó pressão nos donos de bar, de birosca, no pessoal da van. Dois 'rei', cada um no seu pequeno reino de merda e medo. Nenhum dos dois valia o chão que pisava.
A Vó Anahi, lá no seu canto, concentrada, parecia enxergar cada passo deles através das paredes do barraco. Pegou duas bonequinhas toscas que tinha feito com palha de milho e uns trapos velhos. Com a ponta do dedo sujo daquela lama preta e energética, ela passou nos 'olhos' de uma das bonecas, e na 'mão' que segurava um pedacinho de arame farpado na outra. E então, ela chegou perto da fresta da janela e soprou. Soprou o nome deles no vento úmido da noite: 'Caju... Borges...'. O vento pareceu ganhar corpo por um instante, levou os nomes morro abaixo como se fossem folhas secas.
Lá na viela, Caju, no meio da gargalhada, sentiu um arrepio esquisito subir pela nuca. Instintivamente, olhou pra trás, rápido. Nada. Só os parça dele, a luz amarela do poste. "Qualé, Caju? Viu passarinho verde, mané?", zoou um dos vapores. Caju mandou logo um palavrão, disfarçou, mas ficou bolado. Uma sensação ruim, do nada. Do outro lado do morro, o Sargento Borges, contando as notas amassadas do 'arrego' dentro do carro velho, sentiu a mão direita formigar com força, depois ficar gelada, como se tivesse segurado um bloco de gelo. Estranho pra caraca. Balançou a mão, ignorou. Mas a sensação demorou a passar.
Nos dias que se seguiram, a maré começou a virar pra esses dois. Coisa pequena, no começo, mas que não parava. O fuzil novinho do Caju emperrou bem na hora que ele ia dar uns tiros pro alto pra 'marcar presença' na chegada de um carro suspeito. Mó vacilo. Depois, perdeu um carregamento de 'produto' que simplesmente sumiu do esconderijo que só ele e mais um sabiam. Prejuízo grande, patrão ficou na bronca. Pra piorar, começou a ver uns urubus esquisitos, voando em círculo bem em cima da laje onde ele dormia. Toda santa tarde. Nunca tinha reparado naquilo antes, ou será que tinha? Ficou cismado.
Já o Borges... ah, o Borges começou a dormir mal pra caramba. Tinha uns pesadelos brabos, com sombra se mexendo na mata escura – que mata, se ali era só concreto e tijolo? –, com olho brilhando na escuridão do quarto dele. Acordava suando frio, o coração disparado. Durante o dia, a grana do 'arrego' pareceu minguar. Uns dois comerciantes, dos mais antigos, criaram uma coragem do além e vieram com um papo reto de que não iam pagar mais taxa nenhuma. Mó caô, enfrentaram o miliciano na cara dura! E as baratas, mermão... puta que pariu, as baratas! Pareciam seguir o cara! Saíam dos bueiros, das frestas, quando ele passava na rua. Um bagulho nojento e sinistro pra cacete. Ele pisava nelas com ódio, mas apareciam mais.
O povo no morro, que não é otário e repara em tudo, começou a cochichar nos becos. "Ih, Caju tá numa maré de azar que só vendo, hein?", dizia um. "Viu a cara do Borges? Parece que viu assombração...", comentava outra na fila do pão. Uns falavam que era olho gordo dos 'alemão' do morro vizinho querendo invadir. Outros tinham certeza que era 'trabalho feito' na macumba, encomenda de algum comerciante revoltado com a extorsão. Passava longe da cabeça de qualquer um que a culpada podia ser a Vó Anahi, a véia quieta e esquecida lá do alto do morro.
Mas na noite de sexta-feira, a parada ficou séria de verdade pro Sargento Borges. Ele tava voltando pra casa, mais tarde que o normal, depois de 'resolver uns problemas'. Entrou num beco escuro e fedido, atalho pra chegar mais rápido. Só a luz fraca de um poste quebrado lá na frente vazava um pouco. Deu aquela parada estratégica pra mijar ali no cantinho escuro, atrás de uma pilha de lixo. Normal, coisa de homem na rua. Quando terminou de ajeitar a calça, sentiu um bafo frio na nuca. Gelado. Virou rápido, a mão já indo pro revólver na cintura.
Nada. Ninguém. Só a sombra dele projetada na parede úmida e descascada pelo poste lá longe. Ele relaxou um segundo, xingou baixo. Mas aí ele ouviu. Um chiado. Baixinho, sibilante, parecendo cobra no meio do lixo, mas não era som de bicho. Vinha das sombras mais escuras do beco, de todos os lados ao mesmo tempo. E no meio daquele chiado medonho, ele jurou – com a alma gelada – ter ouvido uma palavra. Uma palavra repetida várias vezes, numa língua que ele nunca tinha ouvido, mas que soava antiga, poderosa. A língua que Vó Anahi cantava em seu barraco: '...devolva... o que não é seu... devolva...'.
O Sargento Borges, mermão, um cabra grande, acostumado com troca de tiro, com ameaça, com a brutalidade do dia a dia, sentiu um medo que ele nem sabia que existia. Um medo primordial, que vinha da terra, do tempo. Um pavor que fez o sangue gelar nas veias. Ele não correu, mas saiu dali andando rápido, quase tropeçando no lixo, o coração batendo na garganta feito tambor de guerra. Olhava pra trás a cada passo, esperando ver alguma coisa naquela escuridão que parecia ter ganhado vida. Ele não sabia o que era, mas teve a certeza absoluta que alguma coisa muito véia, muito poderosa e muito puta da vida tava de olho nele ali no morro. E essa coisa, com certeza, não era boa gente. Não pra ele.
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Atualizado até capítulo 42
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