A manhã chegou sem cerimônia, como se nada tivesse acontecido. O sol entrou pela janela do apartamento de César, espalhando uma luz suave que contrastava com o caos que ainda morava dentro dele. Estava deitado no sofá, como havia adormecido — com a garrafa de vinho ainda pela metade e o controle remoto caído no chão, onde aparentemente tentara buscar distração em algum documentário sobre pinguins monogâmicos. Irônico.
César abriu os olhos devagar, com a cabeça latejando e o peito pesado. Olhou ao redor como quem procura algo que sabe que não vai encontrar.
Levantou, foi até o quarto vazio e parou na porta, encarando o berço que já não estava mais ali. A mala, o som da risada de Dominique, os brinquedos espalhados — tudo parecia ter evaporado.
Então, a lembrança veio. Não uma cena grandiosa. Só uma frase, simples, que ele mesmo dissera meses atrás, numa noite qualquer, quando Dominique voltou mais tarde que o habitual:
— Você avisa quando sai... mas não avisa com quem.
A lembrança foi como um tapa. Não pelo conteúdo — mas pelo tom com que tinha dito. Como se Dominique precisasse justificar a própria liberdade.
Na hora, César pensou em se defender, mesmo ali, sozinho. Como se pudesse discutir com a própria memória.
Mas calou-se.
Foi até o banheiro, lavou o rosto, olhou para o próprio reflexo.
— Você não percebe o estrago que faz... até quando já não tem ninguém pra ouvir o barulho.
Se vestiu sem pressa, sentou-se na beira da cama e encarou o celular. Nenhuma mensagem. Nenhuma chamada. Só um fundo de tela antigo — Dominique, rindo, com o filho nos braços. César suspirou.
E pela primeira vez em muito tempo... não sabia o que fazer em seguida.
Do outro lado...
O carro deslizava pela estrada enquanto o sol da manhã pintava tons dourados nos prédios que Dominique deixava para trás. A cidade ainda acordava, mas ele já estava acordado há horas — não por escolha, mas por ansiedade.
O filho, devidamente acomodado na cadeirinha, dormia com a boca entreaberta e uma pelúcia apertada contra o peito. Dominique olhou pelo retrovisor e sorriu, mesmo que por dentro estivesse se desmontando.
O silêncio da estrada dava espaço demais para pensar. E pensar era o último verbo que ele queria conjugar naquele momento.
Mas era inevitável.
Lembrou da noite passada, enquanto dobrava os macacões do bebê e encaixava livros infantis na mala. Pensou no quarto que César havia pintado com ele, cor por cor, como se fosse o projeto mais importante do mundo. E era.
Só que o amor deles... foi escurecendo aos poucos. Não por falta de afeto, mas por excesso de vigilância.
Uma noite, por exemplo, ele chegou em casa com cheiro de perfume — perfume de amigos, risos inocentes, tudo certo. Mas César cheirou sua roupa como quem procurava provas. Dominique não disse nada naquela hora, mas por dentro, algo rachou.
“Amar não é o mesmo que vigiar.”
Ele disse isso uma vez, numa discussão pequena, que depois virou silêncio por três dias.
Agora, com a mão no volante e a estrada à frente, Dominique não sentia raiva. Sentia... cansaço. E um tipo estranho de culpa, mesmo sabendo que precisava ir.
— Você não é ruim, César... só se perdeu um pouco no medo de me perder.
O filho resmungou no banco de trás, mudando de posição. Dominique estendeu o braço para segurar a pelúcia que quase caiu.
— Mas eu não podia continuar tentando caber num espaço que você apertava cada vez mais — sussurrou, mais pra si mesmo.
E seguiu. A estrada era longa, mas pela primeira vez em muito tempo, ele sentia que tinha espaço pra respirar.
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Atualizado até capítulo 85
Comments
crismochi
eu acho que isso foi resultado de falta de comunicação
2025-04-13
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