Capítulo 4 – O Silêncio dos Cúmplices

Gabriel estava sentado no banco de trás do ônibus escolar, encarando a janela sem realmente enxergar a paisagem. Os fones estavam no ouvido, mas nenhuma música tocava. Era só o silêncio.

Desde a cerimônia no auditório, ele não dormia direito.

Tinha pesadelos recorrentes: o lago à noite, gritos abafados, uma garota afundando… e ele de pé na margem, com o celular na mão, sem fazer nada.

As palavras da gravação não o deixavam.

A frase que Helena gritou antes de desaparecer:

— “Você também viu! Por que não me salvou?”

Ele jurava que ninguém mais tinha ouvido aquilo. Mas nos sonhos... ela dizia só pra ele. E agora, mesmo acordado, ele escutava a voz dela — sussurrando em lugares onde o som não deveria existir.

Como agora.

— “Você estava lá, Gabriel.”

Ele engoliu em seco. Olhou para os lados. Os outros alunos conversavam normalmente.

— “Você viu tudo. Sentiu excitação no medo dela. Achou que não era sua culpa. Mas agora… me vê até quando fecha os olhos.”

Ele apertou os punhos e tirou os fones. Sua respiração estava rápida. O peito, apertado.

— Não é real. É só estresse. É só trauma. Só isso…

Mas no fundo, ele sabia.

Não era “só isso”.

 

Naquela tarde, Gabriel se trancou no quarto. A mãe achava que ele estava estudando, mas ele passava horas na frente do computador, pesquisando sobre "possessões", "aparições", "ligações espirituais com traumas".

Achou um fórum obscuro onde alguém mencionava:

> “Espíritos que morrem com desejos não realizados tendem a buscar meios de satisfação mesmo após a morte. Quanto mais íntimo o desejo, mais forte a conexão.”

Era exatamente isso que ele sentia.

Um desejo que não era só dele.

Era compartilhado.

Mas quem estava conduzindo?

Ele? Ou ela?

 

Ao anoitecer, sentiu a temperatura do quarto cair. O abajur piscou. E o espelho em sua frente ficou embaçado, mesmo sem vapor.

Gabriel se levantou devagar, o coração aos pulos. Aproximou-se do espelho.

E viu Helena.

Não como fantasma, mas como reflexo de algo vivo.

Os cabelos colados ao rosto, os olhos escuros, fundos, as pupilas dilatadas. A pele úmida, como se tivesse saído do lago.

— “Você lembra do que sentiu, não é?”

Gabriel queria negar. Mas o corpo tremia. A verdade rasgava por dentro.

— “Eu… eu queria te ajudar. Juro... Eu fiquei paralisado.”

— “Você olhou. Gravou. Desejou.”

Helena tocou o espelho do lado de dentro. E o vidro começou a suar em forma de dedos.

— “Você queria me tocar. Você imaginava... mesmo enquanto eu chorava.”

Gabriel caiu de joelhos.

— “Não… não é verdade...”

Mas era.

No fundo mais podre de sua consciência, ele tinha sentido algo. Não prazer no sofrimento dela… mas um impulso que o envergonhava. Um impulso de ver. De possuir. Mesmo sem agir.

Helena sorriu. Um sorriso perigoso e ao mesmo tempo doce.

— “Então me toque agora, Gabriel. Faça o que queria naquela noite.”

O espelho brilhou. E Helena saiu dele.

 

Ela estava ali. Fisicamente. Ou quase. O corpo parecia feito de névoa sólida. Umidade fantasmagórica. Mas o calor que ela exalava era real.

Gabriel não conseguiu recuar. Helena veio por cima dele. As mãos frias no peito. Os lábios pairando sobre os dele.

— “Você me quis. Mesmo em silêncio. Agora, eu quero que você sinta o que é ser possuído.”

O beijo veio com violência e doçura. E com ele, um turbilhão de emoções — prazer, culpa, medo, vergonha, excitação.

As roupas dele se desfaziam em calor. Mas não havia toque físico. Só a sensação. Como se cada nervo fosse explorado por um desejo antigo e proibido.

Ela o envolveu inteiro. Como uma maré de sensações.

E então, quando Gabriel estava prestes a se entregar por completo...

Helena sussurrou:

— “Você nunca mais vai sentir prazer sem lembrar de mim. E toda vez que tocar alguém... vai ver meus olhos.”

Ela desapareceu.

Deixando Gabriel nu, encolhido no chão, tremendo.

E com a marca em seu peito.

Uma flor.

Queimada na pele.

 

No dia seguinte, Gabriel não apareceu na escola.

Mas deixou uma mensagem em um grupo de amigos:

> “Ela está viva. Dentro de nós.

Não corram. Ela quer que a gente sinta.

E eu senti.

Senti tudo.”

Arthur leu a mensagem várias vezes. E então, pela primeira vez em semanas, sentiu o impulso de agir. De contar o que sabia.

Ele correu até Lívia, que lia seu caderno num banco do pátio, cercada de folhas secas — e uma única flor murcha no meio delas.

— “Eu quero falar com ela.”

Lívia não ergueu os olhos.

— “Certeza?”

— “Sim. Chega de fugir. Se ela vai me matar… que seja olhando nos olhos.”

Lívia fechou o caderno, devagar. Os dedos deslizaram sobre a capa como se tocassem pele.

— “Então venha comigo. Mas saiba... depois disso, você nunca mais será só você.”

Arthur hesitou. Mas assentiu.

A marca em seu peito ainda ardia.

Gabriel olhava para o espelho, onde não havia mais reflexo algum. Só o próprio vazio.

Tentou esfregar a pele, apagar a flor queimada, mas era inútil. A dor não vinha do corpo. Era mais fundo. Ela estava dentro dele agora.

Uma parte dele. Um pedaço da sua alma, sugado para dentro de Helena.

“Você nunca mais vai se livrar de mim,” ela havia dito.

Ele acreditava.

 

Na escola, o clima estava sufocante. Havia algo no ar — como se todos estivessem à beira de um colapso silencioso. Professores mais rígidos. Alunos cochichando. Alguns faltando todos os dias.

E Lívia?

Ela andava como se nada tivesse acontecido. Cabelos soltos, olhar calmo, o velho caderno de capa rasgada sempre nas mãos. Mas quem a olhasse de perto veria. Havia algo novo nela. Um brilho sombrio nos olhos. Uma confiança quase... sensual.

No fundo da sala, Gabriel observava.

Ela era o elo. O canal. A ponte entre o mundo dos vivos e a fúria de Helena.

E, ainda assim, ele a desejava.

 

Após a aula, ele a esperou no corredor.

— “Lívia,” chamou, com a voz falha. “Preciso falar com você.”

Ela se virou lentamente, como se já esperasse.

— “Você viu, não foi?” — ela perguntou. — “Ela foi até você.”

Gabriel assentiu. Os olhos úmidos. O corpo ainda abalado. A flor ainda queimando.

— “Eu não quero ser o próximo. Mas... eu também não quero fugir.”

Lívia o estudou por um momento. Depois, abriu o caderno. As páginas se viraram sozinhas.

Lá estava: o nome dele riscado.

— “Você já foi escolhido, Gabriel. Não há volta. Mas...” — ela se aproximou, com suavidade — “você pode ser útil.”

Ele a encarou, surpreso.

— “Útil?”

— “Helena precisa de mais do que vingança. Ela quer lembrança. Ela quer eternidade. E pra isso... precisa de histórias. Precisa de nós.”

Gabriel sentiu o coração bater mais rápido.

— “Ela me tocou de um jeito... que ninguém nunca tocou. Me mostrou tudo que eu negava sentir.”

— “Então sente tudo,” sussurrou Lívia. “Deixa doer. Deixa queimar. Ela quer isso.”

Lívia levou a mão até o peito dele, tocando a flor marcada.

— “Você vai escrever pra ela também.”

— “Como?”

— “Com o corpo. Com a pele. Com o medo.”

Lívia o puxou para perto. Os lábios dela quase encostando nos dele. Mas era a voz de Helena que ele ouvia dentro da cabeça:

— “Agora você pertence a mim.”

 

Naquela noite, Gabriel voltou para casa sem saber exatamente quem era.

Cada toque no próprio corpo o fazia lembrar de Helena.

Cada suspiro, cada gota de suor.

Ela estava ali.

Nos sonhos, ele a via nua, coberta de lama e água, os olhos brilhando em meio à escuridão do lago. Ela não falava. Só olhava. E Gabriel... se ajoelhava diante dela.

 

Do outro lado da cidade, Lívia escrevia no caderno.

As palavras saíam em linhas tremidas, como se outra mão a guiasse:

> “Gabriel é meu.

Ele sentiu.

Ele se abriu.

Ele vai queimar.”

E abaixo, mais uma página foi virada.

Mais um nome apareceu.

Beatriz.

A próxima peça.

O próximo silêncio a ser quebrado.

E do lago, a voz voltou a ecoar:

— “Mais um… só mais um…”

E, de longe, Helena sorriu.

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