"Vozes do Silêncio

"Vozes do Silêncio

Capítulo 1 – O Lago

O céu estava coberto de nuvens pesadas quando encontraram o corpo de Helena Rocha. O lago refletia o cinza do céu como um espelho rachado. A água, quieta demais. Quase cúmplice.

Ela estava deitada à margem, os cabelos colados ao rosto, o corpo frio como pedra. Os olhos fechados escondiam os gritos que ninguém ouviu. A boca, entreaberta, ainda parecia suplicar por socorro.

A cidade murmurava. A escola silenciava. E a polícia... encerrava. "Suicídio", disseram. Um bilhete, mal rabiscado, encontrado dentro da mochila dela: “Desculpa por tudo. Eu cansei.”

Simples assim. Mais um corpo. Mais um número.

Mas o que ninguém sabia... é que Helena ainda estava aqui.

Presente. Presa. Fúria e dor costuradas à alma. Ela flutuava entre os mundos como bruma densa, invisível aos olhos, mas viva nos sussurros e arrepios.

Naquela noite, a escola parecia mais escura do que nunca. O gerador havia falhado três vezes. As luzes piscavam, como se algo brincasse com os fios da realidade.

Valentina, sua ex-melhor amiga, passava rímel diante do espelho do banheiro feminino. O silêncio ao redor era incômodo, mas ela fingia não notar. Como sempre fazia. Ultimamente, sentia como se estivesse sempre sendo observada — uma presença atrás de si, um arrepio na nuca.

Helena apareceu atrás dela por um segundo — uma silhueta pálida refletida no vidro, os olhos fixos nos dela. Valentina estremeceu, virou-se depressa, mas não viu ninguém. Só a pia pingando, ping... ping...

Ela riu nervosa.

— “Para de ser louca, Val…”

Mas quando olhou de novo para o espelho, o vidro estava embaçado. Uma frase se formava lentamente, escrita como se com um dedo molhado:

“VOCÊ ME DEIXOU.”

Valentina caiu sentada no chão frio, tremendo. Não precisava de mais nada. Ela sabia. Tinha traído Helena quando ela mais precisou. Sabia do que acontecia... e se calou.

Agora era tarde.

Enquanto isso, do outro lado da cidade, Arthur Mello acordou no meio da madrugada. O lençol colado ao corpo suado, o coração batendo como se tivesse corrido uma maratona.

O sonho ainda queimava em sua mente.

Ele estava nu dentro do lago, nadando em águas escuras. Braços o puxavam debaixo da superfície, e ele se debatia. Mas o medo se misturava com um calor estranho, quase prazeroso.

Ao emergir, viu Helena parada na margem. Também nua. O corpo molhado reluzia sob uma lua que não existia no céu real. Os olhos dela eram intensos, famintos. Sedutores.

Ela estendeu a mão. Ele quis tocar. Mas afundou de novo.

Acordou com um suspiro preso na garganta.

— “Merda…”

Pegou o celular. Uma nova mensagem, de um número desconhecido:

“Você lembra do que fez comigo naquela noite? Porque eu lembro de tudo, Arthur.”

Apagou o número sem pensar. Mas o arrepio não passou. Sentia como se alguém o observasse do escuro do quarto.

E parte dele — parte suja, enterrada — ainda desejava Helena. Mesmo agora. Mesmo morta.

Enquanto isso, Lívia Andrade, a garota estranha da turma do terceiro ano, acordava com um sobressalto. Um zumbido ecoava nos ouvidos. Ela havia sonhado com uma floresta úmida e sombria, onde caminhava descalça até a margem de um lago.

Lá, Helena a esperava. Os cabelos pingavam. Os olhos não pediam — exigiam.

— “Você me escuta?” — sussurrou uma voz sem boca.

Lívia caiu da cama, tremendo. Quando acendeu o abajur, um susto: na parede, bem acima da cabeceira, algo havia sido escrito com tinta escura, escorrida:

“ESCUTA.”

Ela ficou paralisada. Os dedos gelados, os lábios entreabertos. Mas, em vez de correr... ela sentou-se, encarando a palavra.

Algo dentro de si despertava. Como uma semente esquecida no escuro, finalmente tocada pela luz.

Na escola, os corredores ganharam um eco estranho. Apagões, objetos movendo sozinhos, alunos ouvindo choros onde não havia ninguém. Alguns falavam de "presenças". Outros apenas rezavam baixinho, com medo.

Os boatos cresciam. E no centro de tudo, um nome reaparecia nos sussurros: Helena.

A diretora tentava manter a ordem, mas nem ela acreditava mais na explicação oficial. A culpa pesava. A ausência de câmeras, a falta de cuidado com as denúncias que chegaram no mês anterior... tudo a consumia.

E Helena via tudo.

Do canto da sala, flutuava como sombra, absorvendo a culpa, o medo, a raiva.

Ela se alimentava da dor dos vivos.

E queria mais.

Queria justiça. Queria que cada um sentisse o gosto da solidão, do desprezo, da humilhação que ela engoliu calada. Mas não só isso.

Ela queria ser sentida. Desejada. Temida.

Queria fazer Valentina chorar pelo toque que negou. Queria invadir os sonhos de Arthur até ele implorar por perdão — ou prazer. Queria usar Lívia como ponte, como olhos, como arma.

E acima de tudo… ser ouvida.

Porque Helena Rocha não estava morta.

Ela estava despertando.

 

Um vento gelado percorreu os corredores da escola, fazendo as janelas tremerem e os cartazes nas paredes dançarem como mãos nervosas. O silêncio, antes opressor, tornou-se um convite para algo — ou alguém — se mover.

Helena abriu os olhos pela primeira vez desde a morte. Não havia escuridão nem luz, apenas uma sensação de estar entre dois mundos. Sentiu o corpo etéreo flutuar acima do lago onde tudo começara. As correntes que a aprisionavam se desfizeram como névoa ao toque do sol nascente.

Ela desceu em direção à margem. Cada passo deixava rastros de geada na relva, como cicatrizes no tecido da realidade. Lá, viu seu reflexo quebrado na superfície da água — não mais o corpo sem vida, mas uma forma translúcida, os olhos brilhando com uma fúria contida e um desejo insaciável.

“Eles ainda me veem?” — pensou, e percebeu que não. O mundo dos vivos ainda não a reconhecia plenamente. Ela precisava de algo mais: um laço, uma memória, um medo que os prendesse a ela.

 

No mesmo instante, Valentina voltou ao banheiro do segundo andar. O espelho, agora limpo, não exibia mais sua própria imagem, mas uma sombra pálida atrás dela. Ela sentiu um arrepio e, pela primeira vez, não teve dúvida.

“Helena?” — sussurrou, mas o nome ecoou vazio.

A frase “VOCÊ ME DEIXOU” já não estava mais no vidro. Em seu lugar, um símbolo estranho, como um círculo incompleto, havia sido desenhado em vapor — um convite indecifrável.

 

Arthur, ainda em transe, ouviu o tilintar de uma pulseira contra o piso de madeira. Levantou-se e viu, ao pé da cama, um bracelete de prata que não lhe pertencia. Era a mesma pulseira que Helena usava no sonho. Ele a pegou, e uma corrente de memórias se acendeu: risos abafados, lágrimas escondidas, promessas quebradas.

No instante em que tocou o bracelete, uma voz familiar soou em sua mente:

> “Encontre-me… antes que eu me canse de esperar.”

Ele estremeceu. Sabia que o próximo passo o levaria de volta ao lago — ao lugar onde tudo terminara, mas onde tudo começaria de novo.

 

Lívia, despertada por um chamado inaudível, caminhou até a janela. Lá fora, o pátio da escola estava vazio, exceto por um objeto solitário: o caderno envelhecido que ela própria escrevera. Ele jazia sobre a relva, aberto na página onde o nome de Helena surgia cercado por três círculos.

Sem pensar, ela correu para fora, sentindo cada gota de orvalho como uma agulha na pele. Ao se abaixar para pegar o caderno, percebeu que algo havia sido acrescentado: uma anotação escrita em letras firmes e trêmulas:

> “Eu escolho quem ouve.

Eu escolho quem vive.”

O coração de Lívia disparou. Ela sabia que Helena não brincava mais. Agora, não era apenas sobre vingança: era sobre poder.

 

O sol rompeu o horizonte, tingindo o lago de vermelho pálido. Os primeiros alunos chegaram, confusos ao ver a relva marcada por pegadas que iam da água até a porta principal. Ninguém conseguia explicar o rastro gelado que parecia pulsar sob seus pés.

Valentina, Arthur e Lívia se encontraram diante do portão, cada um segurando um objeto deixado pela presença de Helena: a frase no espelho, o bracelete, o caderno. Sem trocar palavras, souberam o que deviam fazer.

Helena os observava do outro lado do portão, um brilho etéreo nos olhos. Ela estendeu a mão na direção deles, e por um instante, o mundo dos vivos e o dos mortos pareceram se sobrepor.

— Se vocês me ouvirem… — sua voz soou na mente dos três —

— …a verdade será revelada.

E, naquele instante, o lago exalou um vapor branco que subiu até o céu. Os três, de mãos dadas, sentiram a corrente fria envolver seus corpos. Sabiam que haviam dado o primeiro passo para libertar Helena — e, possivelmente, para se perderem para sempre.

O lago permaneceu imóvel, como um espelho pronto para refletir segredos ainda mais sombrios.

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