O último trem

O relógio da estação marcava 23h47. A plataforma estava vazia, coberta por uma névoa espessa que escondia as luzes dos postes e fazia o som dos trilhos ecoar como um gemido distante. Eu esperava o trem havia tanto tempo que já não lembrava para onde pretendia ir, apenas que precisava partir. O vento era frio, o ar cheirava a ferrugem e chuva antiga, e por algum motivo, eu tinha a sensação de que aquela viagem era importante.

Quando as luzes do trem surgiram ao longe, senti um arrepio percorrer minhas costas. Ele se aproximava devagar, rangendo, como se arrastasse séculos de poeira consigo. O barulho dos freios pareceu um lamento metálico, e o silêncio que se seguiu fez meu coração bater mais alto. As portas se abriram com um estalo seco. Nenhum passageiro desceu. Por instinto, entrei.

O interior era antigo, com bancos de couro rachado e janelas cobertas de poeira. As luzes amareladas piscavam, lançando sombras inquietas nas paredes. Por um instante, achei que o vagão estivesse vazio, até notar que não estava. Homens, mulheres, até crianças ocupavam os assentos. Todos imóveis, de olhos fechados, as cabeças levemente pendidas para o lado, como se estivessem dormindo. Mas havia algo errado. O ar era pesado, parado, e um cheiro adocicado de flores velhas e ferro enferrujado se misturava ao ambiente. Então percebi: o que eu via não eram passageiros adormecidos. Eram cadáveres.

O pânico subiu pela garganta, mas nenhum som saiu. Olhei ao redor, tentando entender o que via. As roupas deles eram de épocas diferentes, algumas antigas demais, outras mais recentes, e todos tinham a mesma expressão serena, um descanso artificial, como se estivessem presos num sonho sem fim. Dei um passo para trás e tropecei no corredor. O som do trem parecia mais alto, os trilhos vibrando como um coração cansado. Fui até a porta entre os vagões e tentei abri-la, mas estava trancada. As janelas também não se moviam. Era como se o vagão estivesse selado, e eu, aprisionado dentro dele.

Olhei para o reflexo no vidro e, por um instante, juro que vi alguém atrás de mim. Virei depressa, mas não havia ninguém. As luzes piscavam, o som metálico ecoava por todos os lados, e a sensação de que havia algo ali, algo me observando crescia a cada segundo. Tentei chamar por alguém, qualquer um.

- Tem alguém aqui? - gritei, mas o som da minha voz foi engolido pelo barulho do trem.

Foi então que vi.

Um dos corpos, o mais próximo, estava de olhos abertos. Eles eram cinzentos, sem brilho, mas fixos em mim. Eu recuei, trêmulo, e percebi que, mais ao fundo, outro também me observava. E outro. E mais um. Em questão de segundos, todos os passageiros pareciam ter despertado, olhando para mim com aquele olhar morto, profundo e sem expressão. Nenhum deles se movia, mas a simples existência daquele olhar coletivo me fez querer fugir e não havia para onde ir.

Corri pelo corredor, batendo nas janelas, tentando abrir qualquer saída. Nada cedia. Quando voltei o olhar, um dos corpos estava de pé. Não sei como se levantou, porque eu não o vi se mover. Ele apenas estava ali. O pescoço pendia para o lado, e o som dos trilhos parecia acompanhar o ritmo lento de sua respiração inexistente. Outro corpo se ergueu mais ao fundo, depois outro, e mais um, até que o vagão inteiro começou a se encher de figuras trêmulas, corpos que se erguiam como marionetes sem dono. O ar ficou insuportável, frio e denso, e o cheiro de ferrugem parecia cortar o ar como uma lâmina.

Tentei gritar, mas a voz não saiu. O homem mais próximo moveu os lábios. Nenhum som saiu deles, mas, de alguma forma, eu entendi.

- Você também embarcou.

O coração parou por um segundo. De repente, lembrei de um som, o barulho de um freio, um impacto, o estilhaçar do vidro, e depois o silêncio. Lembrei do clarão dos faróis vindo em minha direção e da sensação de ser arrancado de dentro de mim. A lembrança me atingiu como um soco. Eu não tinha pegado o trem. Eu tinha sido atropelado por ele.

O corpo ficou fraco, e o chão pareceu girar sob meus pés. Os passageiros agora estavam todos de pé, me observando com aquele olhar vazio. Nenhum deles parecia hostil, apenas à espera. Como se estivessem me recebendo. Tentei resistir, mas uma parte de mim, aquela que ainda se lembrava da dor, do frio e do som dos trilhos começou a ceder. Senti as pernas pesarem, o ar rarear, e me deixei cair no assento mais próximo.

A textura fria do couro me abraçou como uma mortalha. Aos poucos, o som do trem diminuiu de intensidade, passando de ruído ensurdecedor a um embalo distante, quase reconfortante. Olhei pela janela, e tudo o que vi foi um túnel interminável, sem luz nem destino. Mas, ao fundo, algo brilhava. Uma pequena luz, fraca e pulsante, que parecia se aproximar. Por um momento, pensei que fosse a saída. Mas então percebi: era apenas o reflexo dos meus olhos, agora tão pálidos e vazios quanto os deles.

O trem seguiu em frente, cortando o escuro com o som contínuo dos trilhos. As luzes se apagaram, uma a uma, até restar apenas o reflexo no vidro. Meu rosto me observava, imóvel, como mais um entre os mortos.

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