A noite estava mais fria do que o normal. O vento cortante soprava pelas ruas desertas, fazendo as árvores se balançarem de maneira inquietante. O ar estava pesado, e a rua parecia engolir cada som, deixando apenas o eco dos meus passos sobre as calçadas.
Eu tinha apenas dez anos, mas o frio não me assustava. Já estava acostumada com a solidão. As casas ao redor estavam escuras, silenciosas e eu sabia que ninguém estava lá.
Eu gostava disso.
O vazio da cidade era mais acolhedor do que qualquer outro lugar. Era seguro.
Minha barriga roncava. Não era uma fome comum, era um vazio profundo, o tipo de fome que só nasce quando se está realmente sozinho. As ruas vazias não me incomodavam. O estômago vazio, sim.
Caminhei mais um pouco. O som dos meus passos batia ritmado nas pedras. O vento cortava o rosto, e meu casaco já não era suficiente. A rua parecia me engolir a cada passo, até que eu o vi.
Ele estava parado à minha frente, como se tivesse surgido do nada.
O sorriso dele não era exatamente amigável, mas também não era ameaçador. Seus olhos eram profundos, como se carregassem segredos antigos. As roupas, gastas, traziam um ar de confiança estranha.
Ele me olhou por um instante antes de falar, a voz baixa, mas nítida na noite silenciosa.
— Você está sozinha, menina?
O tom de curiosidade soava falso. Ele não queria saber, eu sabia o que ele queria.
— Estou com fome. - respondi num fio de voz, passando a mão pela borda do casaco. O frio me fazia encolher. — Não há ninguém em casa para me alimentar.
Senti um calor suave por dentro, algo que não vinha do corpo, mas de um lugar mais fundo.
Ele me observou e o sorriso se alargou, mais satisfeito.
— Posso te dar algo para comer. - disse, com uma doçura quase sedutora. — Eu posso ir até a sua casa.
Olhei para ele com uma empolgação contida e dei um passo para o lado.
— Claro. - murmurei, quase inaudível, permitindo que ele tomasse a dianteira.
Ele sorriu mais uma vez e começou a andar. Eu segui logo atrás.
Quando chegamos, ele não bateu. Apenas empurrou a porta, que rangeu alto, abrindo-se para o escuro.
O cheiro de ferrugem e mofo invadiu o ar denso, metálico.
Ele entrou primeiro. E, enquanto atravessava o batente, uma sombra espessa se ergueu atrás dele, tomando forma.
Dois olhos vermelhos brilharam no escuro.
O vazio da casa se contorceu.
Ele hesitou. Sentiu algo.
Mas ignorou. Voltou a olhar para mim, acreditando que eu era só uma criança perdida.
— Vem, menina, vou te dar o que você quer.
Ele não viu o que vinha por trás.
Mas eu, sim.
E sorri.
O movimento foi rápido, uma língua negra se estendendo da escuridão, envolvendo-lhe os tornozelos e o puxando com força.
Ele gritou.
E o som foi engolido.
Azarok emergiu, imenso.
Tentáculos negros se enrolaram em torno do homem, arrancando-lhe a carne, uma a uma. Sua boca era uma fenda interminável, sugando-o até que restasse apenas o silêncio.
Fiquei parada na porta, observando. Sem medo. Sem pressa.
Quando o último som cessou, a criatura falou:
— Você demorou.
A voz dele era grave, reverberante, cheia de ecos.
Cruzei os braços e respondi, com um meio sorriso:
— Já te disse para não reclamar. Eu estava indo o mais rápido que pude. Acha que é fácil achar comida nesse frio?
Ele sorriu, um sorriso largo, cheio de dentes afiados.
Parecia satisfeito.
Como sempre.
Sem dizer mais nada, deu um passo para trás e mergulhou novamente na escuridão.
Os olhos vermelhos brilharam uma última vez e desapareceram.
A casa voltou ao silêncio habitual.
Fechei a porta devagar, ouvindo o som suave do trinco.
O vento continuava a soprar lá fora, mas ali dentro, tudo era quietude.
Caminhei até a cozinha, abri a geladeira com um estalo. O frio do aparelho me envolveu como um abraço. Peguei uma lata de refrigerante, sentei no sofá e cruzei as pernas.
O som da lata se abrindo foi o único ruído da casa.
Dei um gole, deixando o gás arder levemente na garganta, e olhei pela janela.
Lá fora, a escuridão ainda pulsava.
Promessas de outra noite.
Sorri.
Afinal, a caçada nunca para.
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Atualizado até capítulo 36
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