...25 de janeiro, 2021...
...Duas semanas e dois dias desde a morte da Lilliana...
Eu não morri.
Pro meu azar, continuo vivo.
E essa é a primeira merda que me vem à cabeça antes mesmo de abrir os olhos. Sinto o peso da respiração curta, lenta, como se meu peito tivesse afundado. Não ouço muito — só passos, vagos, indo de um lado pro outro.
Tento mexer os dedos da mão esquerda. Nada. O corpo não responde. Parece que tem uma tonelada em cima de mim.
Caralho.
É uma sensação parecida com cheirar pó depois de muito tempo limpo. A pupila dilata, o peito aperta e você começa a enxergar coisa que não existe — tipo uma vida nova, uma saída. A ilusão de que vai dar certo.
É igual escolher ficar ao lado de alguém mesmo sabendo que, no fim, um dos dois vai morrer.
Quando a porta bate, abro os olhos devagar. A luz da janela invade o quarto com violência. Me cega por um instante. Solto um xingamento alto, mas nem escuto a minha própria voz.
Vai se foder. Esse skank desgraçados tá batendo mais forte que cocaína.
Parece que eu morri ontem. E me trouxeram de volta pra esse inferno hoje.
Tapo os olhos com a mão e tento me levantar do sofá. O esforço é inútil — meu corpo desaba, e caio pra frente com tudo em cima da mesa.
Pratos, papéis, garrafas... tudo no chão.
— Porra, Henrique! Qual é, parcero! — a voz vem do lado. Um braço me segura antes que eu escorregue de vez. — Assim tu vai acabar abrindo os pontos de novo.
Samuel.
O único que ainda aparece por aqui.
Mesmo com uma mulher grávida pra cuidar, mesmo eu tendo feito de tudo pra afastar todo mundo. Mas ele continua. Porque quer. Porque é teimoso.
— Me solta, caralho!
Puxo meu braço com força e tento ficar de pé sozinho. Agora com os olhos abertos, vejo a zona. A sala virou um buraco.
A mesa coberta de pó branco espelhado, garrafas vazias de cerveja, de uísque, e vodca. Um cinzeiro quebrado, cigarros pela metade, sacola de malote rasgada.
Embalagens de comida no chão, roupa suja jogada pra todo lado. Um calor do caralho. Ar abafado que gruda na pele.
— Cara... tu tem que dar um jeito nisso. — Samuel fala calmo, mas firme. Eu nem olho pra cara dele. — Já faz 3 semanas, Henrique. Tu tem uma quebrada pra cuidar, isso aqui…
— Sai.
Minha voz corta o ar.
Viro pra mesa, pego a garrafa com um resto de vodca e despejo no copo sujo. Levo até a boca — ou pelo menos tento. Samuel tira da minha mão antes de eu beber.
— Puta que pariu, Samuel! Tá tirando com a minha cara!?
O grito sai rasgado. Minha paciência já era.
— Tô. Tô tirando com a tua cara, sim. E vou continuar tirando toda vez que tu tentar se matar mais um pouquinho por dia! — ele bate o copo na mesa, sem quebrar, por milagre. — Três semanas, Henrique. Tu tá nesse buraco há três semanas. E todo mundo já percebeu. Essa desculpa de que tu ainda tá se recuperando dos tiros não cola mais. Se tu não reagir, vão tomar o caralho do morro.
Ele não tá mentindo.
Eu sei. Eu sei de tudo.
Depois da invasão da polícia, fiquei quase duas semanas em coma. Apaguei. Meus dois primeiros dias acordado foram com morfina no sangue e tubos na garganta. Quando voltei pra favela, não tive coragem de voltar pra casa.
Ainda tenho ponto sarando. Alguns abriram de novo. Eu me drogo, bebo, misturo tudo. Não é o melhor jeito de curar um ferimento de bala — mas é o melhor jeito de esquecer que a Lilliana morreu na minha frente.
Olho pra Samuel, sem qualquer arrependimento. Se ele não tivesse puxado o gatilho, se não tivesse começado a troca de tiro antes da hora, a ideia do Bernardo teria dado certo.
— Vai. Se. Fuder.
Pego o copo de volta, viro o conteúdo inteiro. Desce rasgando a garganta, queimando até o estômago. Me jogo no sofá de novo, o corpo afundando.
Samuel xinga baixo e sai da sala, batendo a porta.
Eu não vejo ninguém faz mais de um mês. Nem a Bianca.
A última vez que ela tentou me visitar, mandei ela embora no meio de um surto. Xinguei ela como se fosse um inimigo. Ela não vai voltar tão cedo.
Gabriel também não apareceu. Samuel só disse que ele tá na merda. Mas ele ainda vai pra boca, ainda segue.
Bianca tá grávida. Gustavo e Bernardo continuam na favela, ajudando Samuel no que podem.
Mas eu?
Eu tô aqui. Trancado num barraco que nem é meu, porque não aguentei ficar na antiga casa.
Cada canto me lembrava dela.
Mandei o Samuel arrumar outro lugar, e me enterrei dentro dele. Era até ajeitado no começo. Mas todo dia eu destruo mais alguma coisa.
A mesa e o sofá são os únicos sobreviventes.
Tá perto de fazer quatro semanas.
Vinte e oito dias me drogando com qualquer merda que botam na minha frente.
Bebo de manhã, cheiro à tarde, desmaio à noite.
Nem lembro a última vez que vi o sol.
Nem sei como tá o tempo lá fora.
Nisso, Samuel tem razão. Eu tô apodrecendo.
Dou outro gole. Nem sei se é vodca mesmo. Tá tão azedo que meus olhos lacrimejam. Fecho. E quando abro de novo, tudo que vejo é o reflexo de um cabelo castanho se movendo. Uma lembrança.
— Alemão?
Três batidas me tiram do transe. Viro o rosto devagar em direção à porta.
A voz soa familiar, mas não reconheço na hora.
Levanto, meio tonto. A mão se apoia no batente da parede. Antes que eu alcance a maçaneta, o filho da puta do outro lado fala:
— É Bernardo. Só quero conversar. Posso entrar?
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Atualizado até capítulo 38
Comments
Maria Moraes
eu gosto das reviravoltas
que a história dá ainda mais quando
a mulher volta poderosa
ai que tudo
2024-11-02
1
Ana Paula Oliveira
não acredito que ela morreu ela só sofreu a vida toda e ainda morreu
2024-09-21
1
Leydiane Cristina Aprinio Gonçaves
nossa o Henrique está se destruindo em vida tá na hora de seguir em frente Henrique
não é porque a Lili já não está mais entre nós que você tem que se destruir em vida pois você ainda está vivo você tem uma chance ainda para ser feliz ao lado da sua irmã Bianca e dos seus amigos bola para frente nem tudo está perdido Henrique
se drogar e beber até cair não resolverá a sua dor de ter perdido a Liliana para a morte ok levanta a cabeça e vai cuidar do seu morro antes que outro venha e resolva tomar conta do seu morro por você
2024-09-07
3