Prólogo

...RIO DE JANEIRO, 2015...

...Lilliana...

Era início de janeiro e, estranhamente, fazia frio. Os professores da escola costumavam brincar que quem nasce carioca já vem com um “bônus de calor” no corpo. Um tipo de imunidade natural às ondas escaldantes da cidade.

Pois bem, eu sou carioca. Mas, sinceramente? Acho que esse bônus passou direto por mim. Porque, neste exato momento, a temperatura do meu corpo parece tão baixa quanto o céu nublado que cobre a cidade. E a garoa fina que cai sem descanso só piora tudo.

Ou talvez o frio venha de dentro. Talvez seja consequência de ter saído de casa às dez da noite, praticamente sem agasalho, correndo feito uma idiota em meio à chuva.

Meu nariz escorre e eu limpo com as costas da mão, ignorando qualquer indício de um resfriado iminente. Ficar doente não me importa. O que eu queria, de verdade, era me afastar daquela casa o mais rápido possível. Queria encontrar minha avó. Ficar perto de alguém que me faça sentir segura.

Era o meu aniversário. E, mais uma vez, meus pais brigaram, acho que essa foi uma das piores brigas deles.

Por minha culpa, minha mãe chorou. De novo.

E meu pai descontou nela. De novo.

Só porque eu quebrei um copo de vidro.

Mas como eu podia adivinhar que o copo ia escorregar da minha mão e se estilhaçar no chão? Por acaso tenho bola de cristal? Espelhos falantes? Algum objeto mágico que me avise do futuro? Não. Mas pra ser sincera, eu não acho que tenha sido só por causa do copo, devia tá acontecendo outra coisa com eles.

Mesmo assim, ficar em casa parecia ser pior do que sair sozinha pra ir até a favela.

Eu nem dinheiro tenho.

As únicas moedas que consegui juntar foram aquelas velhas, enferrujadas, esquecidas no fundo do cofre que ganhei no verão passado. E foi com elas que paguei a passagem do ônibus.

Já fazia mais de vinte minutos desde que saí da Barra. O lado bom é que agora eu estava na favela. Mesmo com os olhares desconfiados dos homens armados na entrada, me deixaram passar. Talvez por piedade. Talvez por saberem que ninguém vem sozinha aqui essa hora à toa, ou por já me conhecerem como filha da minha mãe.

Passei pelo primeiro beco, me guiando pelas luzes amareladas dos postes e pelas poças d’água que refletiam a noite. Virei à direita na rua aberta, em frente ao bar da Tia Maria, e lá estava ele. Sentado sozinho na arquibancada velha de cimento, no campinho de futebol, com as mãos apoiadas nos joelhos.

Mesmo de longe, reconheci Henrique.

Respirei fundo e voltei a correr. Senti as anteninhas da minha tiara, que já estavam quase se quebrando de tanto sacolejar durante o trajeto. Fantasia de abelha idiota e eu sou mais idiota ainda por ta usando um troço desses.

Pulei por entre as grades da entrada do campinho, enferrujadas e rangendo alto, como se estivessem protestando contra a minha presença. O barulho foi suficiente para fazê-lo levantar o rosto.

Henrique parecia ainda mais magro. Os ossos da face mais marcados, os ombros mais caídos. Na verdade, as crianças dali não eram muito diferentes umas das outras. Cresciam depressa, amadureciam cedo e carregavam o peso de um mundo injusto nas costas frágeis.

Sorri para ele, arfando, ofegante da corrida.

Ele retribuiu com um sorriso tranquilo e um aceno discreto.

— Tá frio aqui fora. Por que você não tá em casa? — perguntei com naturalidade, tentando respirar direito depois de tanto correr.

Sentei ao lado dele, sentindo o cimento gelado atravessar o tecido do vestido jeans e alcançar minha pele. O vento noturno era úmido, e o cheiro de terra molhada se misturava com o de fritura vindo do bar.

— Tá melhor aqui — respondeu ele, sem tirar os olhos da quadra.

Mas eu sabia que não era isso. E não era essa a resposta que eu queria ouvir.

— Qual foi? — cutuquei o braço dele com o cotovelo, mas ele nem se mexeu. — São teus pais de novo?

Ele levantou o rosto e, por um segundo, achei que fosse me responder com alguma provocação. Era típico. Mas, em vez disso, soltou uma gargalhada inesperada.

— Que isso na tua cabeça, Lilli? Tá parecendo o Chapolin Colorado.

Ele deu um peteleco numa das bolinhas da tiara e eu bati na mão dele, irritada.

— Para, Henrique! — ajeitei a anteninha com cuidado. — É fantasia de abelha. Eu ia sair com meus pais hoje.

Puxei a tiara da minha cabeça e vi o estrago que tava. Se minha visse isso iria me matar, eu pertubei tanto ela pra comprar essa fantasia cara pra caramba.

— De abelha?! — ele riu ainda mais alto, a risada ecoando pelas arquibancadas vazias.

— É. Nunca viu uma abelha? Aqueles insetos que voam, fazem mel…? Ah, quer saber esquece. Eu tô indo ver minha avó.

Levantei, sacudindo o vestido molhado de leve. Mas, antes que pudesse dar o primeiro passo, ele segurou meu braço.

— Calma aí, pô. Tava só brincando.

— Não parecia “só” brincadeira — resmunguei, emburrada.

Henrique se levantou também. Ele estava mais alto do que me lembrava. Quase dezesseis, mas já passava fácil dos meninos da idade dele. Talvez por isso minha mãe implicasse tanto com minhas amizades. Eles eram todos mais velhos. Já estavam se tornando adolescentes de verdade. E eu… ainda tava chegando lá.

— Tu tá com quase catorze anos e ainda usa essas paradas na cabeça, tá parecendo criança — comentou, mexendo de novo na tiara.

O embrulho no meu estômago voltou. Aquela sensação que aparecia toda vez que ele falava comigo assim. Como se o mundo parasse por um instante.

— “Quase” não. Eu tenho catorze. Fiz hoje.

Herrinque arregalou o olho na minha direção.

— Hoje?

— Sim, agora. Bem agora.

— E o que tu tá fazendo aqui, branquinha?

Suspirei.

— Minha mãe queria me trazer pra passar meu aniversário aqui com a minha avó depois da festa lá da empresa do meu pai, mas ele não queria deixar. No meio da briga eu deixei o copo cair, meu pai gritou com ela e… — parei de falar ao notar o jeito como ele me olhava. — Que foi? Tá me olhando assim porquê?

[...]

Faz cinco minutos que Henrique me fez andar até a padaria mais próxima, pra comprar um bolo, um bolo pra mim. Eu neguei, mas quando se trata de teimosia Henrique é pior do que eu.

— Vai, pega logo antes que eu derrube — disse ele, estendendo um bolo pequeno, dentro de uma sacola de plástico.

— Tu não precisava ter comprado bolo. Podia usar o dinheiro pra escola.

— É meu presente pra tu. Bora comer lá na Tia.

Henrique sempre fazia isso. Sempre dava um jeito de me surpreender com alguma coisa, mesmo sem que eu pedisse.

Antes que ele saísse andando, segurei de leve a borda da camisa dele.

— Vamos pro campinho. Lá é melhor.

— Lá tá frio, Lilli.

— Mas o Samuel deve estar na Tia. E você sabe que ele é um poço sem fundo de fome. Vai querer comer meu bolo todo.

Ele sorriu e me entregou a sacola.

— Tá suvinando comida agora, é? Riquinha…

— Não é isso — falei, já andando. — Mas o presente é meu, eu divido com quem eu quiser.

Não demorou muito e já estávamos sentados na arquibancada de novo, dividindo o bolo de chocolate. Ele usava um garfo plástico meio torto. Eu, uma colher que veio junto no pacote. O frio não incomodava mais tanto.

— Ela deve tá te procurando.

Henrique disse, quebrando o silêncio. Ele tava falando da minha mãe.

— Talvez. Mas eu não quero falar com ela. Nem pensar nela.

Fiquei observando a quadra vazia. Sentia que ele estava me encarando. Henrique sempre fazia isso.

— Tu quer se formar em quê?

Virei o rosto em direção a ele, surpresa com a pergunta.

— Assim, do nada?

— Só pra jogar conversa fora. Tu disse que não queria falar da tua mãe.

— Hum… — coloquei outro pedaço de bolo na boca. — Gosto das tias que dão aula aqui na favela. Mas também gosto de fotografia.

— Professora? — disse ele, franzindo a testa.

— Talvez. E para de fazer essa cara de julgamento.

— Não tô julgando. Só acho que não dá dinheiro.

Apoiei os braços atrás do corpo, inclinando a cabeça para o lado. Minha visão agora era das costas dele.

— Eu disse que ainda não sei, Henrique. — Ele não se virou. Ficou quieto, encarando o nada. — E você? O que quer fazer?

Ele riu, sem humor.

— Sei lá… Só sei que preciso sair daqui com a minha irmã. O resto... nem pensei. — Ele virou o rosto e, por um instante, vi sua pupila dilatar. O olhar dele ficou estranho. Profundo. — Tu pensa em casar?

Arregalei os olhos, surpresa.

— Casar?! — coloquei a mão sobre a boca para segurar o riso. — Espera, tá falando sério?

Ele fez um gesto impaciente com as mãos.

— Quer que eu desenhe o que é um casamento?

— Deixa de ser besta! — empurrei o ombro dele. — Eu sei o que é casamento, só é estranho você me perguntar isso. Tá pensando muito no futuro.

— Escutei uma história do tio do beco hoje cedo…

E então ele contou. Falou de encontros predestinados, de três fases. Acidente. Coincidência. Destino. Uma história mal contada que, mesmo assim, ficou grudada na minha cabeça. Mas a história não tinha final, o tio do beco não contou pra ele o que acontecia, e eu achei injusto uma história daquela não ter final.

— É só fingir que já tem final — disse ele, se levantando e estendendo a mão pra mim.

— Não é assim que funciona.

— É, sim. É só ignorar.

Recolheu os plásticos e os restos do bolo.

— Tava bom o bolo?

— Tava sim. No próximo aniversário, quero outro igual.

Henrique sorriu e me ajudou a descer da arquibancada.

— Foi por causa da história que você perguntou sobre casamento, né?

— Na…

— ... E você, pensa em casar?

Ele abriu a portaria enferrujada, saindo com cuidado.

— Sei lá… Casamento é uma parada mó difícil. — ele se virou para mim. — Mas talvez um dia.

Seu olhar ficou tão sério, tão intenso, que precisei desviar.

Ainda não sei o que ele pretende fazer com o próprio futuro. Mas espero, de verdade, que seja algo bom. Algo bonito.

Quanto a mim... Bem, mesmo sem admitir, eu tenho medo dessa palavra: futuro.

Minha mãe diz que é normal sentir isso quando a gente cresce. Que não se deve pensar tanto no amanhã.

Mas será mesmo?

E se eu não tiver um amanhã?

Se eu morrer daqui a um tempo?

Pode ser a qualquer dia. Qualquer hora.

E quando esse momento chegar… Espero que pelo menos eu tenha partido por uma boa causa.

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Comments

Pedro Miguel

Pedro Miguel

Tô começando Autora...

2025-03-05

0

Leydiane Cristina Aprinio Gonçaves

Leydiane Cristina Aprinio Gonçaves

quem dera né se as nossas vidas fosse só esse mar de inocência quando nós somos crianças ou adolescentes
ela era tão inocente quando ela era apenas uma adolescente dá uma dó de tudo o que ela passou até chegar a vida adulta

2024-09-07

2

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