O sol ainda se espreguiçava por entre as copas das árvores, tingindo de dourado os telhados de pedra da vila. Kiara acordou com o frio da manhã entrando pelas frestas da janela e o cheiro de lenha queimando na lareira do quarto. Ela se levantou silenciosa, esticando-se para afastar o sono pesado que ainda pesava sobre os ombros, e vestiu sua capa escura por cima da roupa simples que havia separado na noite anterior. O frio matinal a fez apertar a gola, mas não havia tempo para hesitar.
Descendo as escadas da pousada, o aroma de pão quentinho e ervas queimando no braseiro a recebeu antes mesmo que seus pés tocassem o chão da cozinha. O local estava tranquilo; a luz filtrava-se pelas janelas, refletindo no chão de pedra polida. Ela seguiu até a mesa, onde já estavam alguns pratos preparados, e foi então que notou algo diferente: um pequeno pedaço de papel enrolado, preso por uma fita roxa, repousava discretamente sobre a madeira. Estranhou. Ninguém deveria saber que ela estava ali, nem sequer a pousada deveria ter visitantes matinais que deixassem mensagens. Antes que pudesse tocar o papel, a mulher robusta de cabelos ruivos presos num coque surgiu atrás do balcão, carregando uma bandeja com pão quente e canecas de bebida fumegante.
— Bom dia, senhorita — disse a mulher, com a voz gentil — Trouxe seu café da manhã.
Kiara ergueu as sobrancelhas, mantendo os olhos no bilhete.
— E isso? — perguntou, mostrando o papel para ela.
A mulher inclinou-se levemente, quase como se estivesse compartilhando um segredo.
— Alguém deixou para você logo cedo, achei melhor trazer antes que sumisse.
Kiara franziu o cenho, surpresa e cautelosa.
— Estranho, ninguém deveria saber que estou aqui.
A mulher apenas sorriu levemente, como quem não se impressiona com estranheza.
— Ás vezes as coisas encontram o caminho certo, mesmo quando deveriam ficar escondidas.
Ainda desconfiada, Kiara desatou a fita, desenrolando o papel, mas ainda não abriu, guardando-o por um instante.
— Obrigada — disse finalmente, erguendo os olhos para a mulher — E… qual é o seu nome?
A mulher sorriu e inclinou a cabeça, batendo levemente os dedos sobre a mesa.
— Yora — disse, com a firmeza de quem está acostumada a ser ouvida.
Kiara sorriu, um gesto raro e genuíno, e agradeceu novamente.
— Obrigada, Yora.
A mulher apenas assentiu, retirando-se silenciosa para o outro lado da cozinha. Kiara ficou ali por alguns segundos, observando o pergaminho em suas mãos, sentindo que aquele pequeno pedaço de papel poderia mudar o curso de seu dia ou talvez de tudo que ainda estava por vir.
O vento matinal entrou pela janela aberta, brincando com as pontas de seus cabelos negros como ébano. Com um suspiro, Kiara abriu o papel, pronta para descobrir quem havia deixado aquela mensagem e o que o destino reservava para ela naquela manhã. O aroma levemente envelhecido do papel misturava-se com o cheiro do café quente, criando uma estranha tensão no ar. As palavras estavam escritas com uma caligrafia firme, quase agressiva, como se cada letra carregasse um desafio.
Coisinha,
Não pense que vou facilitar nada.
Hoje antes do sol mais ardente, na taverna, você terá sua chance de provar se merece estar onde eu permito que apenas os dignos entrem.
Três provas esperam por você.
Falhe em qualquer uma, e não haverá volta.
Christian Arvid
Kiara franziu as sobrancelhas, o canto da boca curvando-se em um sorriso sarcástico.
“Coisinha…” Repetiu baixinho, quase rindo da ousadia dele. O bilhete não era só um chamado: era uma provocação, um convite mesclado a ameaça. Ela podia sentir a presença dele em cada palavra, como se ele tivesse se divertido escrevendo cada linha, desafiando-a e testando sua paciência antes mesmo de vê-la. Ela deixou o pergaminho de lado por um instante, a mente girando.
Como diabos ele soube que eu estava nesta pousada?
A suspeita surgiu rapidamente, mas Kiara a empurrou para o fundo de sua mente, agora não era hora de paranoia, era hora de foco.
Voltando sua atenção para o café à sua frente, ela pegou a caneca fumegante, deixando o aroma quente se espalhar pelo nariz antes de tomar um longo gole. O líquido forte queimou suavemente sua garganta, despertando-a completamente. Os pães ainda quentes eram servidos em pequenas fatias, untados com manteiga e mel, e ela os comeu com a precisão de alguém acostumada a manter o corpo afiado. Cada mordida parecia preparar o corpo e a mente para o que estava por vir. Ainda assim, o bilhete não saía de sua cabeça.
Christian Arvid
O nome sozinho provocava um frio na espinha, mas também despertava algo mais sombrio, excitante. A perspectiva de medir suas habilidades, de enfrentar alguém tão implacável quanto ele, acendeu algo dentro dela, uma chama de desafio que ela não podia ignorar. Ela colocou a caneca no prato com cuidado, absorvendo a luz da manhã que entrava pela janela e refletia nas paredes de pedra da pousada. O bilhete, ainda aberto diante dela, parecia quase pulsar com a energia de quem o escrevera. Cada palavra de Christian carregava arrogância, mas também uma certeza silenciosa de poder, como se ele estivesse testando-a antes mesmo de vê-la.
Kiara respirou fundo, fechando os olhos por um instante. A raiva, a curiosidade, a ansiedade e a determinação misturavam-se em um turbilhão, formando um mosaico de emoções que fazia cada músculo do seu corpo vibrar. Sabia que não poderia se mostrar nervosa, mas também que não poderia recuar. Não agora. Não depois de tudo o que havia feito para chegar até ali. Ela pegou novamente o bilhete, lendo e relendo cada linha:
“Três provas.
Falhe em qualquer uma, e não haverá volta.”
A frase repetiu-se em sua mente. O frio na barriga misturava-se com excitação. A sensação de risco, de estar prestes a entrar em um mundo desconhecido, tornava o café da manhã quase irrelevante, mas ela sabia que precisava terminar, precisava manter o corpo forte e alerta. Ela guardou o bilhete cuidadosamente dentro da capa, como quem abraça uma arma invisível, e levantou-se, alongando os ombros. Um último gole de bebida quente, um suspiro profundo, e ela estava pronta. A manhã podia ser calma, a vila podia parecer pacífica, mas a tensão no ar, o chamado de Christian, era uma promessa de que aquela noite mudaria tudo.
Kiara saiu da cozinha com passos silenciosos, sentindo a madeira fria do piso sob os pés. Ela agradeceu novamente à Yora que a observara de longe, o sorriso firme de gratidão agora misturado a uma determinação quase feroz. Yora inclinou levemente a cabeça em resposta, como se soubesse que sua hóspede não era uma mulher comum.
Segurando firme o bilhete, Kiara respirou fundo, deixando o ar frio da manhã encher os pulmões e fortalecer o corpo. Ela não tinha respostas sobre como Christian descobrira sua presença, nem sobre as provas que a aguardavam, mas uma coisa estava clara: ela não recuaria.
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O sol ainda se espreguiçava preguiçoso no horizonte, espalhando os primeiros raios de luz pelo vilarejo, tingindo as ruas de tons dourados e alaranjados. A vila ainda respirava devagar, os sons das carroças e passos ecoando timidamente entre as pedras irregulares. Kiara ajustou a capa escura sobre os ombros, o bilhete cuidadosamente guardado em seu cinto, e seguiu pelas ruas estreitas, cada passo medido, cada som absorvido. O coração batia com uma mistura de excitação e concentração; não havia tempo para hesitação. A taverna se erguia à sua frente, ainda silenciosa naquela hora da manhã. O rangido da porta ao empurrá-la ecoou pelo salão vazio. O cheiro de madeira, cerveja antiga e carne defumada preenchia o espaço, tornando o lugar familiar, mas ainda carregado de tensão. Erwin estava ali, limpando uma mesa com um pano encharcado de água quente, seu semblante calmo como sempre. Ele ergueu os olhos e sorriu ao vê-la.
— Bom dia, senhorita Kiara — disse, a voz suave mas firme.
Ela retribuiu com um aceno rápido, mantendo o olhar firme e direto.
— Bom dia, Erwin, preciso falar com Christian.
O homem arqueou uma sobrancelha, o canto da boca se curvando num sorriso discreto.
— Ah… Suba as escadas e bata na segunda porta à direita e… boa sorte.
Kiara não respondeu, apenas assentiu, deixando que a determinação falasse por ela. Subiu os degraus rangentes, cada passo ecoando pelo corredor silencioso. O quarto indicado estava à sua frente, Kiara abriu a porta com firmeza, encontrando Christian Arvid sentado atrás de uma mesa de madeira robusta, uma luz fraca iluminando apenas parcialmente seu rosto. Ele ergueu o olhar, os olhos verdes penetrantes estudando-a com uma mistura de curiosidade e sarcasmo.
— Finalmente… — disse, a voz carregada de ironia — Já era hora, coisinha.
Kiara ergueu o queixo, cruzando os braços, os olhos faiscando de desafio.
— Você deveria escolher insultos melhores se quer me impressionar — A voz saiu ríspida, firme, carregada de desprezo — E pare de enrolar, quero saber sobre esses testes.
Christian inclinou-se levemente para trás, um sorriso torto se formando nos lábios. O olhar verde penetrante estudava cada movimento dela, avaliando coragem, audácia… talvez até estupidez.
— Corajosa ou estúpida… — murmurou, como se saboreasse a decisão dela — Difícil dizer, coisinha.
— Não vim para papinho ou julgamentos — rebateu Kiara, a impaciência evidente em cada sílaba — Quero respostas.
Ele ergueu uma sobrancelha, apoiando o queixo nas mãos, o sorriso se alargando num misto de sarcasmo e prazer em provocar.
— Então, vamos ao que interessa, o primeiro teste — sua voz mudou, tornando-se mais fria, calculada, sem resquício de brincadeira — Quero que você traga para mim o líder de uma alcateia vizinha, Caligo, de preferência vivo, mas se não puder, bem, não há escolhas fáceis nesse mundo, não é mesmo?
Kiara arqueou uma sobrancelha, o olhar afiado como uma lâmina recém-forjada.
— Só isso? — disse com ironia seca. — Esperava algo que realmente testasse minhas habilidades, não uma simples caçada.
O sorriso de Christian se alargou, um brilho de perigo cruzando seus olhos. Ele apoiou o corpo na cadeira, inclinando-se para frente, os cotovelos sobre a mesa, como um predador curioso diante de uma presa que ousa mostrar os dentes.
— Simples, é? — A voz dele era baixa, arrastada, carregada de um deboche calculado— Você fala com tanta confiança, coisinha, que quase me convence de que tem ideia do que está prestes a enfrentar.
Kiara deu um passo à frente, o som das botas ecoando no assoalho de madeira.
— Eu não “quase” convenço ninguém — rebateu de forma ríspida — Eu faço, se quer me testar, então me teste de verdade, não desperdice meu tempo com tarefas que qualquer covarde armada conseguiria cumprir — Os olhos dela faiscavam com um brilho impaciente, quase selvagem.
O silêncio que se formou entre os dois foi denso, como se o ar tivesse sido cortado ao meio. Christian manteve o olhar fixo nela, estudando cada traço, cada nuance, como se estivesse tentando decifrar o limite entre coragem e arrogância, depois, riu, um riso baixo, rouco, que mais parecia um aviso do que diversão.
— Cuidado, coisinha — murmurou, levantando-se devagar — Essa língua afiada pode te colocar em problemas maiores do que você imagina.
Ela sustentou o olhar, impassível.
— Eu sou o problema maior do que eles imaginam.
Por um instante, o ar pareceu vibrar entre os dois o poder e o orgulho se enfrentando em silêncio. Christian passou a mão pelos cabelos, como quem tenta conter um impulso de rir de verdade, mas não consegue disfarçar o fascínio.
— Está bem — ele disse, finalmente — Então prove que é tudo isso que diz ser — Ele deu a volta na mesa, aproximando-se o bastante para que ela sentisse o calor da respiração dele quando completou: — Traga Caligo até mim, mostre-me que suas palavras valem mais do que essa postura ensaiada de guerreira invencível.
Kiara deu um meio sorriso, o tipo de sorriso que carrega ameaça e promessa ao mesmo tempo.
— Quando eu voltar, quero ver se ainda vai me chamar de “coisinha”.
Christian sustentou o olhar por mais um segundo, antes de desviar, quase rindo.
— Se voltar viva, talvez eu escolha um apelido mais… adequado.
Ela virou-se sem dizer mais nada, o som da capa roçando o chão enquanto atravessava a porta com passos firmes. Não havia hesitação em seus movimentos, apenas determinação como se já tivesse vencido o primeiro teste só por encará-lo de igual para igual. Christian a acompanhou com os olhos até ela sumir pelo corredor, o sorriso desaparecendo aos poucos.
Por um momento, ficou apenas o silêncio e a sensação de que, pela primeira vez em muito tempo, ele havia encontrado alguém que não sabia o significado de temer.
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Atualizado até capítulo 151
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