Ano 350 B – Província de Noguen
O sol pairava alto sobre as copas antigas da floresta, derramando faixas de luz dourada entre os galhos espessos. O som dos cascos ecoava pelo chão coberto de folhas secas, quebrando o silêncio sagrado que habitava o coração da mata. A jovem cavalgava com pressa o vento brincava com seus cabelos negros como o ébano, lançando-os contra o rosto pálido, que reluzia sob o suor e a poeira da estrada.
A floresta de Noguen era viva. O ar cheirava a musgo e pinho, e os murmúrios do vento entre as árvores soavam quase como vozes. O corcel castanho galopava firme, vencendo raízes e troncos caídos, enquanto o ritmo do coração da jovem batia em sincronia com o animal. Quando o sol começou a se inclinar, ela reduziu o passo. Através das sombras verde-acinzentadas, surgiu um vislumbre de pedra e fumaça: o vilarejo. Pequeno, escondido, envolto por muralhas baixas cobertas de trepadeiras e liquens. As ruas eram estreitas, calçadas com pedras irregulares. Homens empurravam barris, mulheres vendiam legumes, e o ar trazia uma mistura de cheiros: pão assando, feno molhado, couro velho. O som distante de uma bigorna ressoava em cadência constante. Era o tipo de lugar que parecia adormecido no tempo e ainda assim, havia algo nas sombras que observava. Ela desmontou do cavalo, alisou o pescoço do animal e o conduziu até um pequeno estábulo próximo a uma taverna. O estábulo era modesto, mas limpo. Um garoto, talvez de doze anos, apareceu do nada, segurando um balde.
— Vai deixá-lo aqui, senhora? — perguntou o menino, com um sotaque arrastado e curioso.
— Só por um tempo, trate dele como se fosse seu, dê a ele algo para comer por favor — respondeu a jovem, entregando duas pequenas moedas de cobre.
O menino sorriu largo e fez uma reverência desajeitada antes de levar o cavalo para dentro. Ela ajeitou a capa escura sobre os ombros e caminhou até o prédio ao lado. A taverna tinha uma placa pendurada por correntes, enferrujada, com o nome “O Machado e a Lua”. O som de vozes e risadas escapava pelas frestas da porta, misturado ao cheiro de cerveja forte e carne defumada.
Ela empurrou a porta o rangido do metal contra a madeira foi como um anúncio.
O salão se voltou para ela.
Havia lenhadores, viajantes e mercadores sentados às mesas. Um grupo jogava dados em um canto, outro ria alto de uma piada indecente. Mesmo assim, o burburinho diminuiu por um instante quando ela entrou. Sua capa escura, o porte ereto e o olhar frio denunciavam que ela não era dali. Ela seguiu até o balcão. O copeiro, um homem de cabelos prateados, encaracolados e bagunçados, com o rosto cortado por cicatrizes que pareciam mapas de batalhas antigas, enxugava um copo quando notou a presença dela. Um dos seus olhos era de um azul pálido, quase translúcido, enquanto o outro, tomado por uma sombra escura, refletia a luz das tochas de um jeito quase sobrenatural. Apesar da aparência marcante, havia algo calmo em seus movimentos, como quem já vira o suficiente do mundo para não se espantar com mais nada.
— Boa tarde, forasteira — disse ele, com um sorriso educado, mas curioso — Vai querer algo para beber? A cerveja de cevada é a melhor da província.
Kiara pousou as mãos enluvadas sobre o balcão e respondeu, num tom calmo, mas direto:
— Estou procurando um homem.
O copeiro arqueou as sobrancelhas, divertido.
— Hah, costumam procurar bebida, não homens, mas diga lá, quem seria ele?
— Ricky Hunt.
O nome caiu no ar como uma pedra no lago. O sorriso do copeiro sumiu por um instante, substituído por um olhar de leve tensão. Ele coçou o queixo, desviando o olhar para os outros clientes.
— Ricky, é? — repetiu, num tom mais baixo, como se contasse um segredo — Não me lembro de ter visto esse nome por aqui…
— Não minta para mim — disse ela, firme — Ele esteve aqui, eu sei.
O copeiro estudou-a, tentando decifrar quem ela era. Seus olhos analisavam cada detalhe o punho da espada sob a capa, o colar de couro no pescoço, o modo como ela se mantinha ereta, mesmo cercada por desconhecidos.
Por fim, ele suspirou.
— Talvez eu saiba de quem está falando, mas o tipo de gente que você procura não gosta de ser procurado — Limpou as mãos no pano — Volte quando o sol se por, é quando as pedras desta vila ganham vozes, se é que me entende.
Ela manteve o olhar firme.
— E onde posso esperar até lá?
— A melhor pousada fica na praça central, em frente ao chafariz — disse ele, inclinando-se levemente — A Casa do Cisne, diga que foi Erwin quem indicou.
Ela assentiu.
— Obrigada, Erwin.
— E um conselho, senhorita — acrescentou ele, antes que ela saísse — Aqui, quanto menos perguntas fizer, mais tempo vive para ter respostas.
O olhar dela endureceu, mas um leve sorriso escapou no canto da boca.
— Prometo tentar sobreviver.
A taverna voltou ao seu burburinho enquanto ela se afastava.
O ar da rua estava mais frio.
O caminho até a praça era curto, mas cheio de vida: vendedores desmontando barracas, crianças brincando na fonte, velas acesas nas janelas. O chafariz era antigo, com estátuas de anjos e água cristalina refletindo o último brilho do entardecer.
A pousada “Casa do Cisne” erguia-se logo à frente paredes de pedra cinza, janelas com molduras de madeira entalhada e um letreiro branco com a imagem desbotada de um cisne. O som de vozes e pratos vindos do interior dava um ar acolhedor.
Ela entrou. O interior era quente e perfumado com ervas queimando no braseiro.
Uma mulher robusta, de cabelos ruivos presos num coque e avental limpo, surgiu atrás do balcão.
— Boa tarde, senhorita, busca abrigo?
— Sim, preciso de um quarto por tempo indeterminado, pago adiantado.
A mulher arqueou as sobrancelhas, surpresa com o tom decidido, mas sorriu gentilmente.
— Temos um quarto no andar de cima, vista para o chafariz, posso preparar uma refeição quente também.
Ela retirou algumas moedas de prata da bolsa.
— Combinado — Pausou por um instante — E… ninguém precisa saber que estou hospedada aqui.
A mulher assentiu, compreensiva.
— Aqui, moça, a gente só fala quando pedem para falar — Entregou-lhe a chave, uma peça de ferro antiga com um cisne entralhado nela — Suba pela escada à direita.
Ela subiu lentamente, o som de seus passos ecoando pelo corredor de madeira. O quarto era simples: cama de lençóis limpos, uma mesa pequena, uma janela com vista para a praça iluminada por tochas. Ela tirou a capa, respirou fundo e olhou pela janela. O vento balançava as chamas das tochas, e as sombras das pessoas dançavam sobre as pedras. O mundo lá fora parecia tranquilo demais para quem carregava segredos tão pesados.
A jovem encostou a testa no vidro frio, os olhos fixos no horizonte.
Em algum ponto daquela vila, Ricky Hunt estava escondido e ela o encontraria.
Custasse o que custasse.
*****
O céu mergulhou num crepúsculo avermelhado antes de se dissolver em tons de chumbo. As tochas ao redor da praça acenderam-se uma a uma, como pequenos sóis tremulando entre o frio e o mistério. A brisa que vinha da floresta trazia o cheiro úmido da terra e o sussurro dos galhos, e Kiara, do alto de seu quarto, observava o vilarejo se recolher os últimos mercadores guardando as carroças, o riso distante de homens embriagados escapando pelas janelas das tavernas.
Ela soltou um suspiro lento.
As mãos trêmulas de leve, o corpo cansado da viagem, mas a mente alerta.
Ricky Hunt.
Aquele nome pulsava em sua cabeça como uma cicatriz antiga.
Vestiu novamente a capa escura, prendeu a adaga na cintura e desceu as escadas em silêncio.
O salão da pousada estava quase vazio, apenas o crepitar do braseiro e o murmúrio de vozes distantes.
Quando cruzou a porta, o vento frio da noite a atingiu, levando consigo o som das cigarras e o aroma de lenha queimada. As ruas estreitas refletiam o brilho das tochas em poças d’água, e cada passo ecoava entre as pedras molhadas. A taverna “O Machado e a Lua” reapareceu diante dela, a placa balançando ao sabor da ventania, o som das vozes masculinas se misturando ao tilintar de copos e risadas.
Ela hesitou por um instante diante da porta, não por medo, mas pela consciência de que cruzar aquele limiar seria entrar de vez num jogo que talvez não tivesse volta.
Empurrou a madeira.
O mesmo rangido respondeu, como se a taverna a reconhecesse.
O ambiente estava mais denso, tomado pelo cheiro de álcool, suor e fumaça. As tochas projetavam sombras nas paredes de pedra e os rostos dos homens ali dentro pareciam entalhados em ferro: duros, fatigados, perigosos. O copeiro Erwin, atrás do balcão, ergueu o olhar e, ao reconhecê-la, franziu discretamente a testa, não esperava que ela voltasse tão cedo.
Ela se aproximou, firme, o som das botas abafado pela madeira gasta.
— Voltei, como pediu — disse, num tom baixo.
Erwin limpou o copo, desviando o olhar.
— E veio na hora certa... as pedras estão cheias de vozes esta noite — Ele fez um leve gesto de cabeça em direção ao canto escuro do salão — O homem que procura chegou.
O coração dela bateu forte, mas o rosto permaneceu impassível.
Seguiu o olhar do copeiro e o encontrou: encostado numa mesa de canto, um homem de barba curta e olhos inquietos, com um ar de quem já viu o inferno e sobreviveu para beber sobre ele.
Kiara caminhou até ele.
Ele ergueu o olhar, primeiro desconfiado, depois atônito.
— O que temos aqui? Uma forasteira em busca de problemas? — provocou, com voz rouca e carregada de ironia.
Ela manteve o olhar firme.
— Alaric Hunt, imagino que tenha esquecido o rosto da sua própria irmã.
O copo em sua mão parou no ar.
O som do bar pareceu desaparecer.
— Kia...? — murmurou ele, incrédulo. — Mas... como?
— Fugi do reformatório — respondeu, seca — Não está feliz em me ver?
A expressão de Ricky, Alaric, mudou num piscar de olhos.
O espanto cedeu lugar à preocupação.
— Estou, mas você não deveria estar aqui.
Ela cruzou os braços.
— E por que não?
Ele olhou em volta, como se as sombras pudessem ouvir.
— Kia, não é seguro pra você, o chefe não tolera forasteiros no bar e mulheres, menos ainda.
Kiara arqueou uma sobrancelha, incrédula.
— Não tolera mulheres? Que tipo de imbecil faz uma regra dessas?
— Kiara, fale baixo! Ficou louca? — sussurrou Ricky, a voz quase implorando.
Ela inclinou-se pra frente, o olhar cortante.
— Não vou falar baixo, está com medo do que o seu chefe possa fazer? Pelo que vejo, ele gosta de ter subordinados que lambem suas botas, você é o capacho pessoal dele, não é?
As palavras caíram como lâminas. O rosto de Ricky endureceu, o orgulho ferido. Antes que pudesse responder, uma sombra se projetou sobre a mesa.
— Alguém tem a língua afiada — disse uma voz baixa, firme, carregada de sarcasmo.
Ela se virou.
Um homem alto, de ombros largos, trajando roupas escuras que cheiravam a couro e sangue seco. O cabelo negro caía despretensioso sobre os olhos verdes olhos que pareciam fitar direto a alma e desmontar qualquer máscara. Uma cicatriz atravessava o canto direito do rosto, acentuando a frieza que emanava dele. Sua presença era um golpe de silêncio. Cada passo que dava parecia calculado, como se o chão o obedecesse.
— Quem é você? — perguntou Kiara, sem recuar.
O homem arqueou um leve sorriso, de quem se diverte com a ousadia alheia.
— Sou o imbecil que criou a regra — A voz saiu fria, quase preguiçosa, mas carregada de poder — E você, coisinha, é a criatura mais irritante que entrou no meu bar nos últimos meses.
Ricky se levantou num salto.
— Arvid, ela é minha irmã, não quis desrespeitar...
O homem ergueu uma mão, cortando-o no meio da frase.
— Silêncio, Hunt— Voltou-se novamente para Kiara — Irmã, é? Que curioso, a família Hunt tem o dom de atrair encrenca.
Kiara manteve o olhar cravado nele, sem medo.
— Se suas regras são tão frágeis que uma mulher as ameaça, talvez o problema não esteja em mim.
Um murmúrio percorreu o salão.
Alguns homens riram baixinho, outros observaram, tensos.
O sorriso do homem se alargou, perigoso, predador.
— Gosto de ver coragem, até ela se transformar em tolice.
Ele deu um passo à frente.
Ela não se moveu.
As sombras os cercavam, o bar inteiro suspenso entre o medo e a curiosidade.
— Diga-me, coisinha, o que veio buscar nesse vilarejo pacato? — ele perguntou, com a voz baixa, arrastada, o tom de quem provoca e testa limites.
Ela respondeu sem hesitar:
— Um lugar na alcateia.
O silêncio se fez absoluto. Até o fogo das tochas pareceu parar de crepitar.
Os olhos de Christian brilharam com algo que misturava surpresa e sarcasmo.
— Uma mulher... na alcateia? — Ele soltou uma risada curta, seca — Você tem mais coragem do que juízo.
— Tenho o bastante dos dois — rebateu ela — E se o que dizem sobre a força da alcateia for verdade, quero vê-la de perto.
Christian inclinou a cabeça, avaliando-a.
Depois sorriu, aquele tipo de sorriso que não promete nada bom.
— Pois bem, coisinha... — murmurou. — Veremos se aguenta o peso do que deseja.
E naquele instante, algo se acendeu no ar.
Um pressentimento.
Uma centelha.
Do encontro entre o ferro e o fogo.
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Atualizado até capítulo 151
Comments
Fernanda Gregolon
muito bom
2024-08-25
0
Anonymous
mal espero para o próximo capítulo
2024-08-02
0