Segredos

O tempo passou, mas Júlio não sabia dizer ao certo quanto tempo já fazia. Dias e noites pareciam se misturar no bar escuro, abafado pelo cheiro de fritura, cigarro e cerveja derramada. O que ele sabia era que já não chorava mais. Não por falta de vontade, mas por cansaço. As lágrimas, como a infância, haviam secado em algum ponto entre a estrada e o quarto dos fundos.

Em algum momento, ele parou de olhar para a estrada e esperar que o pai aparecesse e o levasse para casa. Parou de fazer listas mentais do que ele podia ter feito de errado para ser abandonado. Parou de chorar por se sentir desprezado e por não ter ganhado amor de alguém que ele tanto amava.

Aos poucos ele parou de pensar no futuro e se concentrou em apenas viver um dia de cada vez, mesmo que alguns desses dias, ele desejasse nunca ter encontrado aquele lugar. Ter sido atropelado, talvez, teria sido melhor, ele pensava algumas vezes.

A rotina era sempre a mesma: acordar cedo, limpar o chão, lavar copos, ouvir gritos. Às vezes, recebia um elogio seco. Outras, um empurrão disfarçado de bronca.

Mas o pior de tudo era o olhar.

Silvino não olhava para Júlio como um homem olha para uma criança. Era algo estranho. Um olhar demorado demais, escorregadio, que fazia Júlio se encolher por dentro. Não havia palavras ofensivas. Não havia tapa. Mas havia algo pior: a sensação irritante e constante de ser invadido sem ser tocado.

E então, as coisas começaram a ficar piores do que Júlio podia imaginar. Tudo começou, com copos de leite que Silvino levava à noite. Depois um aperto leve no ombro, um olhar mais demorado no corpo, uma frase aqui e outra ali, sobre como ele estava "virando homem". Júlio não entendia completamente aquilo, porém tinha uma ideia de que aquilo não era certo. E todo dia era a mesma coisa.

— Só vim ver se tá tudo bem — dizia Silvino, e sentava-se na beira da cama, onde o colchão afundava com seu peso.

Júlio respondia apenas com a cabeça. Às vezes Silvino passava a mão em seus cabelos, ou ajeitava o cobertor com uma lentidão exagerada, deixando os dedos descerem pelo braço do garoto, até a cintura. Depois saía, com a mesma calma com que entrava. Júlio sentia que aquilo não era só cuidado, era algo a mais. Algo assustador e terrível.

Na manhã seguinte, tudo parecia normal. Silvino dava instruções sobre a limpeza do bar, cobrava rapidez, oferecia pão com manteiga. Mas o desconforto ficava.

Algum tempo depois, o toque deixou de ser só no ombro ou sobre as roupas. Uma noite, Silvino sentou-se ao lado de Júlio, tirou-lhe o cobertor e passou a mão pelo peito dele, sobre a camiseta.

— Tá crescendo — murmurou, como se fosse um elogio, mas não parou por aí.

Júlio congelou. Não disse nada. Não podia. Não sabia como reagir, e o medo travava tudo. Só conseguia desejar que aquilo acabasse logo. Depois, Silvino saiu do quarto, apagando a luz como se nada tivesse acontecido.

Na manhã seguinte, Júlio teve febre.

Disse que estava com dor de cabeça. Silvino ignorou.

— Deixa disso, menino. Vai varrer o salão.

Júlio obedeceu, com o rosto pálido e as mãos suando.

O mal estar era intenso, mas passou. A vida seguiu e os dias se tornaram semanas, as semanas viraram meses e quando Júlio percebeu, já faziam quase cinco anos que ele estava lá.

As coisas não melhoraram, talvez não tenham piorado também ao longo dos anos. Júlio já tinha se acostumado com aquela forma de sobrevivência. Tinha se acostumado com a ideia de que ninguém o salvaria e ele estava fadado àquela existência.

Até que Lucas apareceu um dia e chamou Júlio, agora com 16 anos, no depósito dos fundos, onde empilhavam caixas de bebida. Fechou a porta.

— Me diz a verdade — começou sem rodeios.

— Sobre o quê?

— Meu pai. O que ele está fazendo?

Júlio ficou em silêncio, os olhos cravados no chão.

— Ele está te tocando...? Fazendo outras coisas...?

O garoto tremia. Não conseguia falar. Apenas assentiu, uma vez, quase imperceptível.

Lucas fechou os olhos por alguns segundos. Quando os abriu, estavam vermelhos. Mas não era de choro. Era raiva.

— Ele faz isso há quanto tempo?

Júlio não sabia se devia responder, mas algo fazia ele sentir que podia confiar em Lucas.

— Desde... desde que eu cheguei...

— Filho da puta...

Lucas deu um soco na parede, assustando Júlio.

— Desculpa... — murmurou o garoto, encolhido.

— Não, não é você que tem que pedir desculpa. Fica tranquilo. Eu tô aqui agora, tá ouvindo?

Júlio assentiu, os olhos cheios de lágrimas contidas.

Lucas saiu do depósito, com o maxilar travado. Naquela noite, ele esperou o bar fechar.

Quando Silvino apagou as luzes e foi até o quarto de Júlio, como fazia todas as noites, encontrou Lucas sentado à porta.

— Vai pra cama, moleque — resmungou, já irritado.

— Não. Hoje, não.

— Como é?

— Eu sei o que você tá fazendo com ele.

Silvino parou. O olhar endureceu. Depois riu, curto.

— Tá vendo demais, Lucas. Isso não é da sua conta.

— Você é um monstro.

Silvino tentou se aproximar, mas Lucas o empurrou contra a parede.

— Se você encostar nele de novo, eu juro que você não sai vivo desse bar.

O velho parou, respirando forte, os olhos brilhando de ódio.

Lucas se manteve firme entre Silvino e a porta. E, naquela noite, Silvino não foi ao quarto no qual Júlio dormia.

Mas Júlio não dormiu mesmo assim. Ficou deitado, ouvindo tudo do outro lado da porta, com o peito apertado. Pela primeira vez, alguém tinha ficado entre ele e o medo.

E pela primeira vez, em muito tempo, ele se sentiu... protegido.

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