Júlio, Flashes De Liberdade.
O céu desabava. Gotas grossas acertavam o para-brisa como se quisessem atravessar o vidro, e o som ritmado da chuva só era interrompido pelo ranger dos limpadores tentando, em vão, oferecer alguma visibilidade.
Júlio, de apenas onze anos, faltando menos de uma semana para os doze anos, estava calado no banco do passageiro. As mãos pequenas tremiam no colo. O silêncio entre ele e o pai era intenso, chegava a ser quase palpável.
— Desce — disse o homem, de repente.
Júlio piscou.
— O... quê?
— Eu falei pra descer do carro, Júlio.
Ele hesitou. O homem — seu pai, mas só no papel — já havia parado no acostamento, sob o céu sem piedade de uma estrada deserta e sem nome. Árvores vergavam ao longe, açoitando o ar com galhos molhados. O asfalto brilhava feito espelho sujo. Júlio sentiu o coração disparar.
— Pai... por quê?
O homem virou-se, olhos avermelhados, hálito forte de álcool e amargura.
— Só faz o que eu tô mandando. Vai.
Houve um segundo de hesitação. Júlio olhou para o lado de fora. Tudo era chuva, frio e medo. Olhou novamente para o pai. Nada ali indicava amor. Não havia um olhar de arrependimento, nem mesmo dúvida. Apenas raiva contida e cansaço.
Com mãos trêmulas, Júlio apertou a maçaneta e abriu a porta. O vento o golpeou como um tapa. Seus tênis encharcaram assim que tocaram o chão. Quando ia perguntar mais uma vez o motivo, ouviu o motor acelerar. Em um rompante, o carro avançou. A traseira do veículo jogou lama para trás enquanto Júlio corria, tropeçando no asfalto escorregadio, gritando.
— PAI! ESPERA! PAI, NÃO ME DEIXA AQUI! — sua voz foi engolida pelo som da chuva e do motor sumindo na distância.
Correu até que suas pernas falharam. Caiu de joelhos no meio do acostamento, mãos no rosto, soluçando. Ali, ajoelhado na beira da estrada, Júlio começou a chorar. Chorou como nunca antes. O tipo de choro que não busca consolo, que não espera ajuda, que só sangra em silêncio. Um choro doído, encharcado, do fundo da alma.
Até que o choro e os gritos cessaram. Tudo o que restava agora era o som constante da chuva e o vazio. O abandono doía mais que o frio. Era como se uma parte dele tivesse sido arrancada ali mesmo, e jogada de volta na estrada como um pedaço inútil.
Sentado na lama, encharcado, sem saber o que fazer, Júlio permaneceu ali por alguns minutos — ou horas, ele não saberia dizer depois. A chuva diminuía e voltava com força, como se testasse sua resistência. Estava começando a tremer, não só de frio, mas de medo real. Um medo que ele nunca havia sentido antes, o medo de estar sozinho no mundo.
Foi então que avistou, à sua direita, uma luz tênue no meio da escuridão. Não parecia farol de carro. Era mais amarelada, imóvel. Uma casa? Um posto? Com dificuldade, levantou-se e começou a andar, pés pesados de lama, roupa colada ao corpo. A luz ia ficando maior. Depois de alguns minutos, reconheceu uma placa de néon: Bar do Silvino.
Não parecia exatamente um lugar acolhedor. Era um prédio pequeno de madeira escura, encostado em uma encosta. Havia uma varanda coberta e um banco antigo na frente. Da janela, vinha um cheiro morno de comida gordurosa e fumaça de cigarro. Júlio parou por um momento. Estava com medo de entrar. Era um garoto sozinho, molhado, à noite, no meio do nada.
Mas não tinha escolha.
Empurrou a porta, que se abriu com um rangido. O som abafado da TV no canto, o cheiro de carne frita e o calor repentino quase o fizeram chorar de novo. Um homem alto, de barba grisalha e olhar atento, levantou-se de trás do balcão. Ele vestia uma camisa de flanela surrada e tinha um pano de prato jogado no ombro.
— Ué... menino? O que tá fazendo aqui nessa hora?
Júlio tentou falar, mas só saiu um soluço. Tentou de novo.
— M-meu pai me deixou... ele foi embora...
O homem franziu o cenho e saiu de trás do balcão, caminhando até ele. Com cuidado, como se aproximando de um animal assustado, abaixou-se na altura de Júlio.
— Espera. Como assim ele te deixou? Onde?
— N-na estrada... — apontou com o braço trêmulo — ali, há pouco. Ele me mandou descer... e depois foi embora...
O homem olhou pela porta aberta. Chuva. Escuridão. Nada.
— Tá sozinho?
Júlio assentiu com a cabeça, mordendo o lábio inferior. O homem ficou em silêncio por alguns segundos, avaliando a situação. Depois fez um gesto com a mão.
— Vem cá. Vamos tirar essa roupa molhada. Vou arrumar uma toalha e um café quente. Você vai ficar bem, garoto. Meu nome é Silvino.
Júlio seguiu-o, sem dizer nada, apenas chorando baixinho agora. Sentia-se exausto, como se cada passo fosse feito de chumbo. Silvino o levou até os fundos do bar, onde havia um quartinho com uma cama de solteiro, um armário velho e uma cômoda. Pendurou uma toalha grossa no gancho.
— Você mora onde? Tem algum parente? Alguém pra ligar?
— N-não... só ele...
Silvino respirou fundo. Aquilo não era o tipo de coisa que se vê todo dia. Um garoto de nove anos abandonado numa estrada. Mas, por alguma razão que nem ele saberia explicar, sentiu que aquele menino agora era responsabilidade sua.
— Escuta, vou te deixar aqui por enquanto. Você vai tomar um banho quente, colocar uma roupa seca. Eu vou fazer um chocolate pra você. E amanhã a gente vê o que faz. Tá bom?
Júlio assentiu.
Talvez ali fosse sua nova chance. Nova vida.
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