Júlio acordou com o som de talheres batendo suavemente em pratos. O cheiro de café fresco e pão tostado invadiu o quarto simples nos fundos do bar. Por um instante, ele esqueceu onde estava até lembrar da noite anterior. O abandono. A chuva. O bar. O homem de barba que o acolheu.
Levantou-se devagar. Usava uma camiseta velha e uma bermuda de moletom, roupas que Silvino havia deixado sobre a cama. Ainda estavam um pouco grandes, mas quentes e secas. Ele passou os olhos pelo cômodo simples: uma estante de livros com títulos empoeirados, um rádio antigo sobre a cômoda e uma foto em preto e branco de uma mulher com um menino pequeno no colo.
Saiu do quarto pisando com cuidado no chão de madeira. Ao passar pela porta dos fundos, viu a cozinha do bar. Silvino estava com um avental amarrado pela cintura, mexendo algo numa frigideira. À mesa, um rapaz de uns 16 ou 17 anos mastigava distraidamente uma fatia de pão. Quando viu Júlio, arqueou uma sobrancelha.
— Dormiu bem, garoto? — perguntou Silvino, sem se virar.
— Uhum... — respondeu Júlio, tímido.
O rapaz olhou para ele por mais alguns segundos, então se recostou na cadeira, curioso.
— Esse é o menino? O que você falou ontem?
— É. Esse é o Júlio — disse Silvino, virando-se com um prato de ovos mexidos —. Júlio, esse é o Lucas, meu filho.
Vinícius não sorriu. Apenas assentiu com a cabeça.
— Oi.
Júlio murmurou um “oi” de volta e se sentou na ponta da mesa, encolhido.
Silvino colocou o prato na frente dele, junto com uma caneca de chocolate quente.
— Come devagar. Tá quente.
Júlio obedeceu em silêncio. A comida parecia coisa de outro mundo: ele não se lembrava da última vez que havia comido algo tão simples e tão reconfortante. Silvino sentou-se à mesa com uma xícara de café forte. Olhou para Júlio por alguns instantes, depois para o filho.
— A gente precisa conversar.
Vinícius ergueu os olhos.
— Sobre o quê?
— Sobre ele ficar aqui. Por um tempo, pelo menos.
Vinícius franziu a testa.
— Pai... você vai mesmo fazer isso?
— O que você queria que eu fizesse? Deixasse o menino na estrada?
— Não, mas... a gente mal dá conta da gente. E agora mais uma boca?
Silvino suspirou. Passou a mão pela barba.
— Eu entendo. Mas ele não tem pra onde ir. E você já teve a sua mãe e eu. Ele não tem ninguém, Vinícius.
Houve um silêncio desconfortável. Júlio fingia não ouvir, mas seus olhos estavam fixos no prato, mastigando sem fome. O garoto sentia-se como um fardo e aquilo doía mais do que qualquer tempestade.
— Ele pode dormir no quartinho do fundo. Só por um tempo — insistiu Silvino.
— Você que sabe — disse Lucas, se levantando —. Mas não sou babá.
Saiu batendo a cadeira com um empurrão. Silvino esfregou os olhos, cansado. Olhou para Júlio.
— Ele não é ruim, só... complicado. A mãe dele morreu quando ele tinha a sua idade. Desde então, fomos só nós dois aqui.
Júlio assentiu, mas não disse nada. Ainda digeria mais que o café da manhã.
Mais tarde, Silvino levou Júlio para ver a parte de trás do bar. Havia um quintal estreito, um galinheiro improvisado e uma pequena casa, modesta, mas limpa.
Silvino acendeu um cigarro e olhou para o céu, que já clareava após a tempestade da noite anterior.
— Escuta... você lembra do número de alguém? Algum parente?
— Não... Só do meu pai e minha madrasta.
— E escola?
Ele balançou a cabeça.
Silvino praguejou baixinho. Jogou a bituca no chão e a pisou com raiva contida.
— Filho da put4.
Júlio estremeceu.
— Desculpa.
— Não, garoto. Não foi pra você. Foi pra ele.
O silêncio pairou pesado. Silvino se abaixou e colocou a mão no ombro de Júlio.
— Isso que ele fez não foi culpa sua. Nunca foi. Ele que é um covarde. Você merece muito mais do que isso.
Os olhos de Júlio encheram de lágrimas, mas ele apenas assentiu com a cabeça.
No final da tarde, Lucas estava lavando copos no bar. Júlio entrou sem fazer barulho, curioso. Observou de longe até que Lucas notou sua presença.
— Vai ficar me seguindo agora? — perguntou, sem agressividade, mas com impaciência.
Júlio deu um passo para trás.
— Desculpa... eu só queria ajudar.
Lucas olhou para ele por um momento. Suspirou.
— Você sabe secar copo?
— Sei, acho que sim.
Lucas jogou um pano sobre o balcão.
— Então vem. Mas nada de quebrar, hein.
Júlio sorriu, quase imperceptivelmente. Caminhou até o balcão e pegou o primeiro copo. Seus dedos estavam trêmulos, mas firmes. Pela primeira vez, em muito tempo, sentia que talvez estivesse fazendo parte de algo, mesmo que fosse apenas de uma pia cheia de copos sujos.
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