03

...Helenne ...

As horas se passaram desde o fim da conversa. Capitão Hensel voltou para sua cadeira e eu continuei onde estava: no chão. Estive bem atenta a cada mínimo movimento feito pelo homem nas horas seguintes. Eu esperava que ele adormecesse novamente, mas isso não aconteceu.

Tentei não me mexer muito; meus pulsos doíam até mesmo com o mínimo dos movimentos possíveis. Eu sentia minha pele arder e eu sabia que estava machucada.

Mais horas foram se passando. Vi o dia amanhecer e Hensel continuava com os olhos afundados nos livros. Não sei sobre o que tanto lia, tampouco o assunto que tanto lhe interessava ao ponto de mantê-lo acordado a maior parte da madrugada. Minha barriga começou a roncar logo cedo. Aquele sim era um péssimo sinal.

Lembrei de suas palavras e do desdém escancarado que havia em cada uma delas ao me falar suas condições. Não sei como ele pretendia me "ajudar" com apenas a única e vaga alegação de que eu era ariana. Por mais que eu tivesse todas as características ideias para as mulheres alemãs, eu não era como elas. Eu era filha de um alfaiate judeu, não de um puro ariano.

Com o avançar das horas, o sol aos poucos penetrava as cortinas finas e invadia o interior da sala. O frio da manhã por algum acaso me lembrou de minha irmãzinha Edith e de nossa antiga vida na pitoresca cidade de Günzburg. Sim, sou nascida e criada na Baviera.

E agora a atmosfera triste causada pelo início da manhã me traz muitas lembranças, cada uma mais infeliz que a outra. Uma vida de infelicidades é o preço a ser pago por ter nascido em um país onde sua existência é indesejada.

— Alvorada! – exclamou Hensel. Ele de repente fechou seu livro, se levantou e caminhou em direção a porta. Em nenhum momento ele olhou para mim, simplesmente me ignorou.

Não sei bem para onde ele possa ter ido, mas ouvi um barulho ensurdecedor de corneta logo após a sua saída. Era exatamente como nos desenhos animados: ao toque da corneta, todos os homens se levantavam e iam para o pátio às pressas.

Ouvi um som sincronizado pouquíssimos instantes após o toque da corneta findar. Ao que parece todos estavam correndo em um único ritmo.

Não sei como tudo estava acontecendo lá fora, mas de repente todos se calaram e não houve nenhum ruído sequer. Isso durou por muitos minutos, porém de imediato a voz odiosa de Hensel irrompeu em um grito estridente.

"Bom dia, senhores" Hensel começou, a voz potente ressoando por todos os lados. "Como já devem saber o treinamento final irá começar. Talvez muitos de vocês não passem no teste físico, mas aquele que tiver força e capacidades suficientes irão vestir o uniforme da Wehrmacht. E como também já deve ser de conhecimento dos senhores, eu não estarei presente durante os treinamentos do pelotão. Essa foi uma decisão que tomei de última hora, mas meus auxiliares me entregarão um relatório a isso. Portanto, me retiro desde já!"

Após o discurso, Hensel adentrou novamente o interior da sala. Ele bebeu um pouco de água e logo em seguida ousou em me lançar o primeiro contato visual desde a conversa da madrugada. Recostado contra a mesa, ele permaneceu em silêncio e agarrou a maçã que estava por ali, mordendo-a e se saboreando na minha frente.

Ele sabia que eu estava com fome.

— Continua pensativa, bonitinha? – ele perguntou, o ar debochado em suas palavras era repugnante. — Ou já tem uma resposta para me dar?

— Você nem sequer me disse qual é o seu preço... – eu disse. Senti mais uma vez minha garganta arder. A sede estava voltando. — Você acha mesmo que encobrir minhas origens com uma mentira vai me ajudar em alguma coisa?

Ele deu mais uma mordida na casca atrativa da maçã. Olhando bem, Hensel não parecia em nada de acordo com o padrão "perfeito" exigido pelo führer.

Hensel não era loiro, tampouco alto. Tinha cabelos pretos e uma estatura mediana, porém seu porte físico e seus olhos azuis recompensavam as falhas em sua aparência.

— Eu estive pensando... – ele disse, a voz incerta. — Não fica bem visto para um capitão de renome como eu ser um homem solitário. Querendo ou não, eles me cobram frequentemente uma família. Uma casa fora da guarnição, uma esposa e um matrimônio sólido.

— Então vou espera que eu faça o que? Que me case com você?

— Sim. E entenda isso como uma porta de saída para os seus problemas. Se casando comigo, você vai ser uma mulher livre e respeitada.

— Definitivamente não. Preferia mil vezes ter morrido.

— Então morra. Sinta seu corpo definhar até a morte porque definitivamente não penso em alimentar você até que resolva aceitar minha proposta!

Suas últimas palavras transmitiram um ódio inexplicável. Hensel parecia muito firme em suas decisões e de fato estaria disposto em me deixar ali para morrer caso não ouvisse a resposta que tanto queria.

Horas depois

Hensel havia saído, no entanto dois homens ficaram na sala. Talvez, na sua ausência, aqueles dois seriam responsáveis por seu trabalho. Mas qual trabalho? Sempre me perguntei isso, mas aparentemente nem tão cedo eu encontraria as respostas.

Já me sentindo derrotada pela fome, minhas mãos tremiam, estavam gélidas como as de um defunto e meu estômago doía. Pela primeira vez pude ter a certeza de que a dor da fome era algo insuportável.

Me encolhi mais ainda no chão. Fui dura comigo mesma por muitos e muitos momentos. Eu estava disposta a chegar ao meu limite, mas, quando realmente cheguei a esse ponto, me assustei. Pude sentir a fraqueza extrema me consumir. Já eram muitas horas desde minha última refeição, um simples mingau de aveia antes de sair em destino a fuga que deu errado.

...(...)...

O capitão voltou por volta do meio-dia. Sua chegada ali aparentemente não era esperada. Pelo pouco que consegui entender, ele não muito afeito a fazer suas refeições na guarnição, mas que com certeza estava ali apenas para zombar de mim. E foi isso que ele fez. Enquanto ele comia, eu sentia o cheiro da comida me entorpecer completamente.

O cheiro de comida fresca me fez revirar, e, quando eu menos esperei, eu já estava chorando, implorando silenciosamente para que fosse alimentada.

Eu sei que ele estava me observando pelo canto dos olhos, mas ainda sim insistia em me desprezar. Ele queria que eu dissesse algo, que lhe pedisse, implorasse verbalmente por um pouco de sua comida. Isso tentei evitar no início, mas foi em vão: ele conseguiu me vencer.

— Você finalmente decidiu pedir comida? – seus olhos brilhavam, ele estava triunfante. — Você foi bem mais resistente do que imaginei que fosse, mas todos se dobram com um pouco de pressão. Você poderá comer tudo o que quiser. Se você aceitar agora mesmo a minha proposta, mando lhe preparar o mais luxuoso banquete!

E este foi o meu fim. Eu queria ter morrido durante os brevíssimos intervalos de cochilo naquele chão duro e frio, mas isso não aconteceu. A fome causava uma dor insuportável e trazia consigo uma sensação igualmente insuportável.

— S-Sim...

— Era exatamente isso que eu queria ouvir!

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Comments

Issa ♑

Issa ♑

agora eu tô imaginando ele moreno, baixinho e de olhos azuis

2024-08-11

0

New Biana

New Biana

Eu no lugar dela já aceitava também a fome é insuportável gente

2024-05-27

1

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