Silêncio suspenso

CAPÍTULO 2:

Ponto de Vista: Aurora

Voltei para a minha mesa e olhei para a tela. O projeto daquele logotipo colorido parecia infantil e ridículo. Como se pudesse existir alegria e simplicidade em um mundo onde a maior parte do tempo era gasta construindo armaduras.

-Lucas Guimarães, o vizinho novo, tinha arruinado minha manhã. Pior: ele a tinha arruinado com gentileza.

Eu esperava um babaca. Um daqueles homens de terno que acham que podem comprar a paz ou intimidar as pessoas. Eu tinha o discurso pronto: a ameaça de chamar o síndico, a acusação de desrespeito. Em vez disso, recebi um pedido de desculpas sincero e uma proposta de negociação.

Ele era diferente. E diferente era perigoso.

Aos meus olhos, as pessoas gentis eram as que escondiam as intenções mais sujas.

O ex-namorado, Pedro, era o mestre em parecer inofensivo no início. Lucas, com aquela aura de "homem do bem", me cheirava a uma armadilha cuidadosamente montada.

Ele só está sendo legal porque quer que eu caia fora da próxima vez que ele for barulhento, pensei, tentando me convencer. É manipulação social. É uma estratégia de negócios, Aurora. Não é pessoal.

O silêncio era total agora, e a falta de ruído da britadeira era mais opressiva do que o próprio barulho. Eu não conseguia me concentrar. Minha mente ficava voltando para os olhos castanhos claros e a forma como ele recuou quando percebeu minha aversão à proximidade.

O respeito. Era genuíno, ou apenas parte do show?

No fim do dia, forcei-me a enviar o trabalho e, exausta pela tensão, decidi que precisava de uma caminhada.

Era meu ritual: sair após o anoitecer, quando a multidão diminuía e eu podia me misturar às sombras.

Abri a porta do meu bunker e me deparei com algo que fez meu cinismo vacilar.

A bagunça de cimento e pó ainda estava na frente da porta 202, mas na minha soleira — na minha soleira, que era a linha de demarcação do meu mundo —, havia uma sacola. Uma sacola de papel pardo de uma padaria chique que eu nunca teria dinheiro (nem coragem) de entrar.

Dentro, encontrei duas coisas: um pão integral quentinho, embrulhado no papel de seda, e um bilhete.

Respirei fundo, sentindo meu estômago embrulhar.

Aquilo era uma invasão. Era um presente. E eu odiava presentes, porque eles sempre vinham com uma taxa de retorno muito alta.

Desdobrei o bilhete. A letra era firme e elegante, sem ser exagerada.

"Um pão para a trégua. E desculpe pelo pó. PS: Se puder me dar uma dica sobre um bom lugar para comprar café moído por aqui, seria de grande ajuda. Estou tentando ser um bom vizinho."

— L.

Não Lucas. Apenas L. Ele não estava me pressionando. Estava fazendo um pedido casual, um ato de serviço disfarçado.

Senti raiva. Óbvio. Ele estava tentando ser amigável. E ele nem sequer mencionou o nome Aurora, só se referiu à situação de vizinhança.

Peguei o pão e entrei, fechando a porta de aço com raiva. Olhei para o pão. Estava quente e tinha um cheiro delicioso de alecrim. Por um momento, senti uma pontada de algo que não sentia há anos: cuidado.

Joguei a sacola na bancada da cozinha. Eu poderia jogá-lo no lixo, mas o desperdício me incomodava. Era um presente de um estranho, um homem que eu tinha acabado de conhecer. Era um risco.

Peguei a faca e cortei uma fatia fina. O sabor era rico e quente. Meus ombros relaxaram um pouco.

Ele só está tentando ser um bom vizinho, repeti para mim mesma.

Mas a racionalização parecia cada vez mais fraca. Por que ele se daria ao trabalho?

Ninguém, em minha experiência, fazia algo bom de graça.

Olhei para a janela. A rua estava escura, mas a luz do poste vizinho iluminava a entrada do prédio de Lucas.

O pensamento me atingiu: ele tinha me feito um pedido. Uma dica sobre café.

E se eu simplesmente respondesse com a dica, de forma fria e impessoal? Sem agradecimento. Sem contato. Apenas uma informação. Isso cortaria a cordialidade e o faria entender que eu não estava à venda.

Peguei um post-it e uma caneta.

O melhor café moído está na padaria A Esquina, na Rua Dom Pedro. Aberta até às 20h. Não espere um retorno. Não sou sua amiga.

Não. Muito agressivo.

Rasguei. Peguei outro post-it.

A Padaria A Esquina vende o melhor café moído.

Curto. Frio. Profissional. Isso era perfeito.

Mas... como eu entregaria isso sem ter que vê-lo?

Abri a porta de aço novamente e olhei para o buraco da caixa de correio da porta 202. Estava fora do meu alcance.

Caminhei até a porta dele e, hesitante, deslizei o bilhete por baixo. O pedaço de papel desapareceu na escuridão.

Meus dedos tremiam. Eu acabara de ter minha primeira interação não-conflitiva com um homem que eu jurava ser uma ameaça.

Eu me virei, apressando-me de volta para o meu bunker.

Eu não tinha deixado Lucas entrar, mas eu tinha respondido. E o medo era que ele considerasse isso um convite.

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