CAPÍTULO 1
Meu apartamento era o meu último e mais importante projeto. Não uma reforma com gesso e mármore, mas um projeto de isolamento. Depois que consegui me livrar daquele inferno ambulante que era Pedro, gastei cada centavo e cada dia de paz que me restava para transformá-lo em um bunker silencioso. As janelas eram espessas o suficiente para abafar o barulho da Avenida Getúlio Vargas, e a porta de aço, que o porteiro do prédio antigo insistiu em chamar de "charme retrô", para mim era apenas uma barreira. Uma barreira entre eu e o resto.
Eu só tinha vinte e cinco anos, mas sentia-me com o dobro dessa idade, e metade da paciência. O freelance como designer gráfico permitia que eu trabalhasse em casa, sem ter que lidar com a cordialidade falsa de escritórios ou com a insinuação que sempre se escondia atrás de um elogio. Eu valorizava minha solidão mais do que qualquer promoção.
Naquela manhã de terça-feira, o silêncio durou exatamente até as dez e meia.
Um estrondo seco me fez pular da cadeira, jogando meu mouse sem fio no chão. Não era o barulho familiar da cidade. Era um ruído agressivo, constante, vindo da parede que eu compartilhava com o apartamento vizinho. Era o som inconfundível de uma britadeira.
Inacreditável.
Fechei a tela do computador com mais força do que o necessário, respirando fundo para controlar o impulso irracional de chorar que sempre vinha quando meu controle era ameaçado. Um dos princípios da minha sobrevivência era a estabilidade. O barulho era o caos. E caos me lembrava de quando eu não tinha voz.
Agarrei meu moletom mais velho — o cinza, que dizia "não se aproxime" melhor do que qualquer placa — e enfiei o cabelo em um coque apressado. Minha intenção não era negociar. Era reclamar. E garantir que o idiota responsável soubesse que ele tinha acabado de comprar uma guerra.
Bati a porta do meu bunker atrás de mim e segui pelo corredor mofado. O ruído aumentava a cada passo, parecendo vibrar na minha caixa torácica.
Cheguei à porta 202, que deveria ser o apartamento do Sr. Osório, um senhorzinho surdo. Em vez do cheiro de naftalina, senti cheiro de pó e cimento. A porta estava escancarada, revelando um cenário de guerra: fios pendurados, sacos de entulho e quatro homens com capacetes que pareciam ter saído de um anúncio de cerveja.
Ignorei os pedreiros e procurei o responsável.
O cara estava parado no meio da sala destruída, com o celular no ouvido. Ele tinha as mãos nos quadris e vestia uma camisa de algodão que era casual demais para ser de trabalho e cara demais para ser de lazer. Ele não parecia um pedreiro, nem um engenheiro. Parecia... um invasor.
Ele tinha a pele bronzeada, o cabelo escuro e barba bem-feita. Seus ombros eram largos demais para a porta e ele se movia com uma autoridade tranquila que me irritou profundamente.
"Sim, mas a prefeitura precisa entender que não posso esperar. O prazo é apertado," ele dizia ao telefone, sem notar minha presença.
Meu sangue ferveu. Prazo apertado? E a minha sanidade?
"Com licença, senhor," minha voz saiu mais fria do que eu pretendia. Ele não reagiu. A britadeira ainda estava rugindo.
Dei um passo à frente, quase no meio do pó de cimento. "Eu disse, com licença!" gritei, sobrepondo-me ao barulho.
Ele finalmente abaixou o telefone, virando-se para mim. E então, eu tive que parar de respirar por um segundo. Não por causa da beleza dele — que era óbvia, no estilo "capa de revista de investimento" — mas por causa de seus olhos. Eram de um castanho claro que parecia capaz de enxergar através do meu moletom.
"Ah, olá, vizinha. Desculpe. O barulho está insuportável, não é?" Ele disse, com um sorriso que eu imediatamente registrei como uma arma de manipulação.
"Não me chame de vizinha, e sim, está insuportável," eu retruquei, cruzando os braços com força. "Estou tentando trabalhar. Não sei quem é o senhor, mas preciso que pare com isso agora. Não se começa uma reforma desse porte sem avisar os moradores."
Ele não ficou ofendido. Nem ficou irritado. Ele apenas acenou para um dos pedreiros, que imediatamente desligou a britadeira, instalando um silêncio repentino e quase ensurdecedor.
"Melhor assim," ele murmurou. Guardou o celular no bolso da calça. "Eu sou o Lucas. Lucas Guimarães. Eu comprei este apartamento e vou morar aqui, mas sim, estou reformando. E você tem toda a razão."
Fiquei momentaneamente sem palavras. Eu estava preparada para gritar, para ser confrontada, para que ele tentasse me diminuir. Eu não estava preparada para Lucas concordar.
"O quê?" consegui perguntar, cética.
"Você tem toda a razão," ele repetiu, dando um passo em minha direção. A proximidade me fez recuar instintivamente, e ele notou. Seus olhos escanearam minha expressão, mas ele parou a dois metros de distância. O respeito pela minha bolha de segurança era inesperado.
"Eu lamento que o barulho tenha começado de forma tão brusca. O prazo realmente está apertado, mas isso não justifica o incômodo. Minha equipe voltará amanhã de manhã, mas podemos limitar os trabalhos mais pesados para a hora do almoço. O que acha? Das 13h às 15h."
Olhei para ele, procurando a mentira, o sarcasmo. O interesse oculto. O momento em que ele diria: agora que fui legal, você me deve algo.
"Não estou aqui para fazer acordos," eu disse, voltando ao meu roteiro defensivo. "Estou aqui para dizer que não aceito. E não preciso da sua... gentileza."
O sorriso dele diminuiu um pouco, transformando-se em algo mais sério, mas não menos cativante. "Tudo bem, Aurora."
Eu gelei.
"Como você sabe o meu nome?"
Ele inclinou a cabeça, o olhar fixo. "O porteiro comentou que a designer do 201 costuma reclamar de tudo. Eu perguntei o nome. Não achei que fosse um segredo de estado."
Ele estava me desarmando com a honestidade e a serenidade. Lucas estava quebrando a minha regra principal: nunca se comporte de maneira esperada.
"Certo. Lucas," eu disse, forçando-me a manter o tom frio. "Amanhã, às 13h, não é ideal, mas... pelo menos me dá tempo para sair de casa."
"Ótimo. E mais uma coisa." Ele estendeu a mão na direção de um saco de lixo próximo à porta dele. "Vi que você estava sem guarda-chuva hoje cedo e a previsão é de chuva. Se precisar de algo, de qualquer coisa, sou seu vizinho agora."
Ele não estava flertando. Ele estava sendo eficiente e útil, o que era pior. Útil. Como se eu precisasse de ajuda.
Recuei mais um passo, sentindo a raiva se misturar com uma confusão perigosa.
"Eu não preciso de nada. Eu sempre me cuido sozinha," eu respondi. Virei-me antes que ele pudesse responder e marchei para o meu apartamento, fechando a porta com um clique satisfatório.
Apoiei a testa na porta de aço, respirando fundo no silêncio recuperado. O invasor tinha prometido que a paz voltaria, e ela voltou. Mas, o silêncio agora parecia diferente. Não era vazio. Parecia suspenso.
Eu voltei para minha cadeira, mas não consegui trabalhar. Olhei para a parede compartilhada, onde a britadeira havia rugido. Lucas Guimarães, o empresário sorridente e paciente, estava lá. E a minha muralha acabara de levar o primeiro, e irritantemente gentil, abalo.
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Atualizado até capítulo 47
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