Os dias seguintes ao encontro com Rafael foram um exercício de foco e contenção. Letícia mergulhou de cabeça no trabalho com uma ferocidade que surpreendeu até ela mesma. As planilhas, os relatórios, as intermináveis reuniões virtuais tornaram-se seu refúgio. Era um mundo de lógica e ordem, onde problemas tinham soluções claras e métricas definidas, um contraste bem-vindo com a bagunça emocional que assolava sua vida pessoal.
Ela se voluntariava para projetos extras, trabalhava até mais tarde, buscando na exaustão física uma fuga da agitação mental. Seus pais observavam, preocupados, mas respeitavam seu espaço, contentando-se em garantir que ela comesse e dormisse o mínimo necessário.
Foi em uma dessas noites de trabalho tardio, com Benício já dormindo e a casa em silêncio, que um ping em seu computador a tirou da concentração. Era uma mensagem no Slack, a ferramenta de comunicação da empresa.
Diego (Líder Técnico): Letícia, você ainda online? Preciso de uma visão sua sobre os números do último sprint antes da reunião de amanhã.
Letícia sorriu levemente. Diego. O Líder Técnico de uns 30 e poucos anos, que sempre parecia incrivelmente calmo em meio ao caos das entregas. Ele era inteligente, direto e, não que ela permitisse que seus pensamentos vagassem muito por esse caminho, extremamente atraente. Tinha aquele ar de quem sabia o que estava fazendo, com uma barba bem cuidada e olhos que pareciam sorrir mesmo quando seu rosto estava sério.
Letícia: Claro, Diego. Estou aqui. Quer que eu compartilhe minha tela?
Diego: Melhor ainda. Pode ser rápida uma call de voz?
Seu coração deu um pequeno salto. Uma call de voz após as 22h? Era estritamente profissional, ela sabia, mas era... diferente.
Letícia: Sem problemas.
Em segundos, a conexão foi estabelecida.
— Diego (voz suave, um pouco cansada): Oi, Letícia. Obrigado por estar disponível. — Ele dispensou as formalidades. — Estou olhando a sua análise de custo-benefício da nova feature. Os números são sólidos, mas a equipe está preocupada com o tempo de desenvolvimento. Você vê espaço para negociar prazos com o cliente, ou é tudo ou nada?
Ela se surpreendeu. Ele não estava questionando seu trabalho; estava pedindo sua opinião estratégica, tratando-a como uma igual, uma parceira na decisão.
— Letícia: Olha, Diego — ela começou, sua voz profissional tomando conta. — Se cortarmos a fase de testes automatizados na primeira entrega, ganhamos duas semanas. Mas é um risco. A outra opção é entregar em fases, mas aí o cliente pode achar que estamos enrolando.
— Diego: Hmm. O diabo sempre mora nos detalhes, não é? — ele riu, um som baixo e agradável que fez algo se contrair em seu baixo ventre. — Você prefere arriscar a raiva do cliente ou um bug em produção?
A pergunta era direta e prática. Letícia gostava daquilo.
— Letícia: Entre a fúria do cliente e a minha, eu fico com a do cliente. — ela brincou, surpresa com sua própria ousadia.
Diego riu novamente. — Diego: Resposta de quem conhece os códigos... e as pessoas. Ok, vou defender a entrega em fases. Sua análise me deu munição. Obrigado.
— Letícia: De nada. Estou aqui para isso.
Houve uma pausa breve. Letícia podia quase ouvi-lo pensar do outro lado da linha.
— Diego: Já é tarde. Você mora longe do escritório? — a pergunta saiu natural, sem segundas intenções aparentes.
Letícia congelou por um segundo. Como responder? "Moro com meus pais e meu filho de seis anos"? Soava... tão distante da imagem da profissional competente que ela lutava para projetar.
— Letícia: Não, não. É perto. — ela mentiu, sua voz um pouco mais aguda do que o normal. — E você?
— Diego: Uns 40 minutos de metrô. Mas valeu a pena ficar até agora para resolver isso. Bom, não vou tomar mais seu tempo. Boa noite, Letícia. E de novo, obrigado.
— Letícia: Boa noite, Diego.
A call terminou. Letícia ficou olhando para a tela escura do computador, seu coração batendo um pouco mais rápido do que o justificável. A interação foi rápida, profissional, mas... agradável. Ele a tratou com respeito e inteligência. Pediu sua opinião. Riram juntos.
Era um contraste brutal com a pesada energia de Rafael e com a dinâmica familiar, por mais amorosa que fosse. Foi um gostinho de normalidade adulta, de reconhecimento profissional, de flerte sutil? Ela não sabia. Mas fez bem.
No dia seguinte, durante a reunião, Diego apresentou o plano de entregas em fases, citando nominalmente a "análise precisa da Letícia" como base da decisão. Ela sentiu um calor de orgulho percorrer seu corpo. Era pequeno, mas significativo.
Após a reunião, outra mensagem no Slack.
Diego: E aí, sobreviveu à reunião? O cliente comprou a ideia.
Letícia: Sobrevivi. Graças à sua lábia e aos meus números.
Diego: Equipe imbatível. — Houve outra pausa. — Olha, sei que é meio aleatório, mas o time de tech vai tomar uma cerveja depois do trabalho na sexta, para comemorar o sprint. Você topa vir? Seria legal ter a visão de negócio lá também.
Letícia leu a mensagem três vezes. Um happy hour. Com o trabalho. Era normal. Profissional. Mas era também um convite para um mundo social do qual ela se sentia excluída há anos.
Sua mente imediatamente começou a criar obstáculos. Benício. Seus pais. A babá? Ela nunca precisou de babá. O que vestir? Como se comportar?
Mas então, ela lembrou do caderno. Lembrou da decisão de não deixar Rafael ou suas próprias inseguranças definirem sua vida.
Letícia: Adoraria! Me passa os detalhes.
A resposta foi quase um ato de rebeldia contra a própria rotina. Um passo minúsculo para fora do porto seguro. Ela mal podia acreditar que tinha aceitado.
Quando contou para Camila à noite, sua mãe ficou radiante. — Camila: Claro que você vai! Nós cuidamos do Benício. Você merece sair, se divertir com pessoas da sua idade. — Seus olhos brilhavam. — E esse Diego... ele é solteiro?
— Mãe! — Letícia riu, sentindo um rubor subir em seu rosto. — É um happy hour de trabalho.
— Camila: Tudo é networking, querida — disse Camila com um sorriso matreiro. — Até encontrar o amor.
Letícia abanou a cabeça, rindo, mas uma centelha de excitação, a primeira em muito tempo, acendeu dentro dela. Sexta-feira parecia de repente muito mais interessante. Era apenas um happy hour, mas era dela. Um evento seu, em sua vida adulta, independente de seu papel de mãe ou filha. Era um começo.
***Faça o download do NovelToon para desfrutar de uma experiência de leitura melhor!***
Atualizado até capítulo 37
Comments