A mensagem de Rafael pairou no ar como uma fumaça tóxica, envenenando a rara quietude da noite. Letícia encarou o telefone deitado na cama, seu coração batendo um ritmo frenético e descompassado contra as costelas. Rafael. Seis anos. Seis anos de silêncio absoluto, de abandono, de noites chorando sozinha com um bebê no colo, questionando se ela não era boa o suficiente, se ele tinha simplesmente apagado eles da existência.
E agora, uma mensagem. Seca. Direta. "Preciso te ver."
O que ele queria? Dinheiro? Perdoá-lo? Conhecer Benício? A última possibilidade fez um frio percorrer sua espinha. Benício era dela. Sua maior vitória, sua razão de ser. A ideia de Rafael, um estranho, querendo entrar na vida do filho que ele rejeitou desde o primeiro segundo, despertou uma fúria primordial nela.
Seu primeiro instinto foi ligar para a mãe. Camila sempre soube o que fazer. Mas algo a impediu. Ela não era mais a adolescente assustada. Era uma mulher de 25 anos. Esta era uma batalha que ela precisava travar sozinha, pelo menos inicialmente.
Com dedos trêmulos, ela pegou o telefone novamente. A raiva superou o medo.
Letícia: Não há nada que nós precisemos falar. Você perdeu esse direito há seis anos.
Ela esperou, ofegante, olhando para as reticências que indicavam que ele estava digitando. A tensão era quase física.
Rafael: Eu sei. Eu errei. Feio. Mas as coisas mudaram. Eu mudei. Por favor, Lê. Só uma conversa.
"Lê". O apelido que ele usava. Uma facada de saudade em meio à raiva. Ela fechou os olhos, lutando contra as memórias que insistiam em vir: os beijos roubados atrás da faculdade, as promessas sussurradas que nunca se cumpriram.
Letícia: Mudou como? De repente decidiu que quer ser pai? Benício não é um brinquedo que você pode pegar e largar quando cansar.
Rafael: Não é bem assim. É complicado. Prefiro explicar pessoalmente. Um café. Meia hora. Se depois disso você nunca quiser me ver de novo, eu sumo. Prometo.
Letícia mordeu o lábio. A parte racional dela gritava para bloquear o número e seguir em frente. Mas outra parte, uma parte curiosa e talvez masoquista, queria olhar nos olhos dele. Queria ver o arrependimento, ou a falta dele. Queria fechar esse capítulo de uma vez por todas, com clareza.
Letícia: Só meia hora. Local público. E se você tentar qualquer coisa, eu grito.
Rafael: O que você quiser. Obrigado, Lê. De verdade.
Ele sugeriu um café no shopping no sábado à tarde. Ela concordou com uma palavra seca ("Ok") e desligou o telefone, jogando-o novamente na cama como se estivesse contaminado.
A noite de liberdade estava arruinada. A ansiedade a consumia por dentro. Ela não conseguiu assistir a nada, não conseguiu ler. Caminhou pela casa vazia, seus pensamentos um redemoinho.
Quando seus pais voltaram, por volta das onze, ela ainda estava acordada, sentada no sofá da sala, envolta em um cobertor.
Camila percebeu imediatamente que algo estava errado. — Camila: Leticia? Ainda acordada? O Benício está bem?
— Letícia: Benício está ótimo. — ela respondeu, sua voz soando oca. — Foi o Rafael. Ele me mandou mensagem.
A declaração caiu na sala como uma bomba. Elias, que tirava o casaco, congelou no lugar. Camila sentou-se lentamente ao lado da filha.
— Camila: O que ele quer? — a pergunta foi direta, sua voz contendo uma frieza que Letícia raramente ouvia.
Letícia contou tudo, a mensagem, a conversa, o encontro marcado. — Letícia: Eu preciso ir, mãe. Preciso olhar para ele e ouvir o que ele tem a dizer. Preciso... fechar isso.
Elias finalmente se moveu, sua expressão carrancuda. — Elias: Eu vou com você. Espero do lado de fora. Esse moleque não merece sua confiança.
— Pai, não. — a resposta de Letícia foi mais firme do que ela esperava. — Isso é algo que eu preciso fazer sozinha. Eu não sou mais a menina que ele deixou para trás. Eu sou a mãe do Benício. E eu decido o que é melhor para nós.
O orgulho misturado com preocupação nos olhos de seus pais era quase palpável. Camila pegou a mão da filha. — Camila: Você está certa. Você é forte, Letícia. Mais forte do que ele jamais será. Mas prometa que vai nos manter informados. Um toque no telefone se você se sentir desconfortável.
Letícia concordou. Naquela noite, adormecer foi uma batalha. Sua mente alternava entre cenas de confronto com Rafael e flashes do passado, da dor que ele causou. Seu corpo, que há poucas horas ansiava por toque e paixão, agora estava tenso, fechado para se proteger.
O sábado chegou com uma lentidão agonizante. Letícia se vestiu com cuidado – jeans, botas, uma blusa que a fazia sentir-se confiante, mas não que estivesse tentando impressionar. Ela não estava lá para ele. Estava lá por ela.
Ela deixou Benício com seus pais, inventando uma desculpa sobre uma "reunião de trabalho urgente". A culpa por mentir para o filho a acompanhou até o shopping.
O café era amplo e claro. Ela o viu antes que ele a visse. Sentado em uma mesa no fundo, virando um copo de água entre as mãos. Ele estava mais velho, claro. O rosto de menino dera lugar a feições mais definidas. Usava uma camisa social, parecia... bem-sucedido? O que ela esperava? Um farrapo?
Ele a viu. Seus olhos se encontraram e o tempo pareceu parar por um segundo. Ele se levantou, hesitante.
— Rafael: Leticia. Obrigado por vir.
— Letícia: (sentando-se, evitando contato visual prolongado) Eu não vim por você. Vim por mim. Então pode começar.
Sua frieza o atingiu como um tapa. Ele assentiu, sentando-se novamente. — Rafael: Eu mereço isso. Eu sei. — Ele respirou fundo. — Eu não tenho desculpas pelo que fiz. Fui covarde. Imaturo. Assustado. Quando você me disse que estava grávida, meu mundo desmoronou. Eu só pensava em mim, na minha faculdade, nos meus planos... e eu fugi. Como um idiota.
Letícia permaneceu em silêncio, seus dedos apertando a alça da bolsa.
— Rafael: Nos últimos anos, eu... eu casei. — a informação foi dada como um soco. Letícia sentiu um nó de raiva e algo parecido com ciúme se formar em seu estômago. — E nós tentamos ter filhos. Descobrimos que ela não pode engravidar.
O silêncio que se seguiu foi pesado, carregado. Letícia sentiu cada palavra como uma facada.
— Rafael: E de repente, aquilo que eu tinha rejeitado, desperdiçado... se tornou a única coisa que eu mais queria na vida. — Sua voz quebrou. — Eu sei que soa horrível. Eu sei que é egoísta. Mas eu preciso saber dele, Leticia. Preciso tentar, se você me der uma chance. Eu sei que não mereço.
Letícia olhou para ele, verdadeiramente olhou. E viu não o garoto popular e arrogante da faculdade, mas um homem arrependido e quebrado. A raiva ainda estava lá, fervendo. Mas outra emoção surgiu: um profundo e esmagador sentimento de pena.
Ela se levantou, suas pernas tremendo levemente. — Letícia: Você está certo. É horrível. E egoísta. — Sua voz estava calma, mas cortante como uma lâmina. — Benício não é um consolo para a sua infertilidade. Ele é uma pessoa. Minha pessoa. Você perdeu o direito de "precisar saber dele" quando me deixou chorando sozinha no ultrassom.
Ela virou as costas e começou a caminhar, seu coração batendo tão forte que ela temeu que ele pudesse ouvir.
— Rafael: Leticia, por favor! — a voz dele era um misto de súplica e desespero.
Ela não olhou para trás. Caminhou pelo shopping, passando por famílias felizes e casais de mãos dadas, até chegar ao estacionamento. Só então, dentro do carro, com as portas trancadas, ela deixou as lágrimas caírem. Não eram lágrimas por Rafael. Eram lágrimas de raiva, de alívio, e de uma tristeza profunda pelo filho, que talvez um dia tivesse perguntas que ela não saberia como responder.
O fantasma do passado a encontrara. E ela o enfrentara. Mas em vez de paz, a conversa trouxe apenas a confirmação de uma dor antiga e a introdução de uma nova complicação em sua vida já complexa. Ela ligou o carro e dirigiu para casa, para o único lugar onde sabia que seria sempre aceita, mas carregando consigo o peso esmagador de que, às vezes, o porto seguro também pode sentir-se como uma gaiola.
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Atualizado até capítulo 37
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