Capítulo 2 — A Sala de Vidro

Ardênia amanhece com pressa.

Os prédios se espelham no céu de chumbo, e as ruas, molhadas por um sereno persistente, carregam aquela pressa que eu conheço bem: a pressa de quem tenta chegar primeiro — a qualquer coisa. O carro desacelera diante do edifício Valmont. O meu nome, em aço escovado, ocupa metade da fachada. É quase irônico: por cinco anos, eu existi como rumor; meu sobrenome, porém, continuou pesando como se eu estivesse sentada no trono. Talvez porque, de certa forma, eu sempre estive.

Camila sai primeiro, fala algo ao segurança, e as portas de vidro se abrem num gesto automático, mas eu sei o quanto de trabalho existe por trás de cada mecanismo que parece natural. Piso no mármore e o som dos saltos devolve àquele saguão a música que faltava. O murmúrio se espalha, discreto; olhares tentam não encarar, mas encaram. O rumor vira presença. A presença vira silêncio.

— Bom dia, senhora Valmont — diz a recepcionista, com a voz que treme só na vogal.

— Bom dia, Elisa — respondo sem olhar a placa do crachá. Eu não esqueci nada.

O elevador nos engole. Camila me entrega um tablet, a tela já aberta em um painel de indicadores: ações, liquidez, auditorias, litígios. Um gráfico serpenteia como lembrança de uma cobra hibernando. Não por muito tempo.

— Sustentamos o crescimento médio anual de 8,3% — diz Camila. — A imprensa falou em “milagre de resiliência”, mas você e eu sabemos que foi disciplina. Os conselhos obedeceram às suas cartas, e os diretores entenderam o recado: quem tentasse tirar vantagem do seu afastamento seria exposto.

— Quantos tentaram?

— Sete. Quatro se demitiram antes que o comitê disciplinar se reunisse. Três foram afastados. Um deles ainda recorre.

— Deixe que recorra. Gosto de ver as coisas seguirem o rito. O rito também humilha.

As portas se abrem no último andar. O corredor é uma lâmina: paredes de vidro, aço, silêncio acolchoado. Eu caminho por ele sentindo que cada passo reconquista centímetros invisíveis que me foram tomados. Ao entrar na minha sala, a cidade se derrama inteira à minha frente — Vidral, a capital de Ardênia, se estende como um tabuleiro de guerra. E é isso que ela é, hoje: um tabuleiro.

Toco a mesa. Não há pó. Camila manteve o lugar como se eu fosse abrir a porta a qualquer momento dos últimos mil oitocentos e vinte e cinco dias.

— Fechamos a agenda para a manhã — ela diz. — À tarde, reunião extraordinária do Conselho Valmont. À noite, você tem… — ela hesita — um convite.

Ergo uma sobrancelha.

— Uma gala da Fundação Castellani, em benefício das vítimas de enchentes no interior. A patrona do evento será… — Camila percorre a tela — Celeste Varela.

O nome cai como um fio de gelo dentro da minha garganta. Celeste. A suposta salvadora. O rosto angelical, a voz doce, o cálculo nos olhos. Em cinco anos, ela não perdeu tempo.

— E Aiden?

— Presidirá a mesa de honra ao lado dela.

Um pequeno, muito pequeno músculo da minha mandíbula responde antes de mim. Eu sorrio, breve.

— Perfeito. — Me aproximo da janela. — Não existe palco melhor do que o que eles mesmos iluminam.

Camila entende o tom. Ela se endireita, o profissionalismo retesa a postura.

— Como quer começar?

Tudo em mim clama por impulsos. Arrancar máscaras à unha. Mas a vingança, se é para durar, precisa respeitar a engenharia. Não é um soco. É alvenaria.

— Vai começar como sempre deveria ter sido — digo. — Com contas e com memória.

Volto à mesa e deslizo os dedos sobre o tablet. Abro três pastas que eu mesma criei anos atrás, ainda na época em que achava que amor e estratégia poderiam coexistir.

PASTA 1 — Rastro da Noite do Rio.

PASTA 2 — Rede Varela.

PASTA 3 — Castellani: portas de entrada.

— Na PASTA 1, quero tudo reativado — digo. — O barqueiro que me ajudou, o prontuário do pronto-socorro, a equipe de plantão, os registros da Defesa Civil de Vidral… Alguém viu. Alguém anotou. E, se não anotou, lembrará quando vir o quanto vale lembrar.

Camila já digita, os dedos seguros. Eu continuo:

— Na PASTA 2, atualize o mapa de contatos de Celeste. Não me interessam só os aliados próximos. Quero os silenciosos: quem paga as contas menores, que empresa terceiriza o que ela chama de filantropia, qual fotógrafo tem exclusividade nos eventos… os intermediários são onde o verniz descasca primeiro.

— Entendido.

— E na PASTA 3… — Eu me inclino, sinto o cheiro leve do couro da poltrona, e volto a dizer o nome como quem testa um metal — Castellani. Quero o organograma inteiro. Quem é o CFO atual, quem assinou o contrato de seguros dois anos atrás, quem substituiu a diretora jurídica quando ela “pediu afastamento por motivos pessoais”.

Camila ergue o queixo.

— Você supõe que a substituição foi empurrada?

— Eu não suponho. Eu lembro o padrão. Aiden sempre trocou especialistas por gente “leal”. Quando alguém é competente demais, ameaça o conforto do chefe.

— E você…? — Camila busca meus olhos — Você ainda o chama de chefe?

Sorrio sem calor.

— Hoje, Aiden é uma variável. Chefes não me mandam. Variáveis, eu resolvo.

O relógio de parede marca onze. Peço café. Camila serve. Bebo como quem recupera um gesto íntimo. Em seguida, abro a gaveta da direita — sei o que vou encontrar antes mesmo de ver: um envelope de papel grosso, selado, que eu mesma deixei ali cinco anos atrás, no dia anterior à minha prisão. Escrevi “Para quando a memória doer mais que a raiva”. Rompo o selo. Há três fotos dentro. Uma, dele, criança, encharcado, tremendo sob uma manta térmica. Outra, a margem do rio, fita amarela, a equipe de resgate. A terceira é uma imagem que ninguém nunca viu: a minha mão segurando a dele, tirada às pressas por um paramédico, sem querer, enquanto ajustava a maca. Vejo minha mão pequena, arranhada, sangrando nos nós dos dedos. Eu era só uma menina, mas já sangrava por ele.

Guardo as fotos. A dor não me enfraquece. Alinha-me.

— Vou convocar o Conselho para as quinze — diz Camila. — Quer que eu alerte também os diretores das subsidiárias?

— Não. Primeiro o Conselho. Eles me devem silêncio e atenção.

— E a gala…?

— Responda confirmando presença. Solicite mesa lateral, última fileira. — Eu encarno o protocolo como uma segunda pele. — E peça credenciais para a minha “consultora financeira”. Você.

— Vai entrar sem anunciar?

— Vou entrar como quem observa. Quem ainda não aprendeu a me temer com silêncio ainda não aprendeu nada.

Camila sorri de canto. Eu sei o que ela pensa: que não há nada mais perigoso do que o meu silêncio. Talvez ela tenha razão.

Ao meio-dia, recebo três ligações que valem o dia. A primeira, do Diretor de Compliance, confirmando que um contrato da Fundação Varela foi firmado com uma agência de eventos recém-criada e com capital social incompatível com a magnitude do trabalho. A segunda, do arquivo municipal, informando que os relatórios da Defesa Civil daquela noite no rio sofreram “extravios pontuais” — expressão burocrática que sempre significa mãos sujas. A terceira, do meu contato mais antigo na imprensa de Vidral, avisando que Celeste deu uma entrevista exclusiva para a revista Aura, e na capa está escrito: “A Verdadeira Salvadora”.

— Eles estão acelerando a narrativa — resumo para Camila, que anota. — Ótimo. Quanto mais rápido correm, mais cedo tropeçam nos próprios cadarços.

— O que quer que eu faça com a agência de eventos?

— Nada. Ainda. Só compre a empresa.

— Compr…?

— Por meio de uma holding distante três camadas, com um nome que não remeta a nós. Quando eu quisesse cortar a luz do palco de Celeste, será útil saber onde fica o interruptor.

Camila ri baixo, e é um som limpo, apesar do subtexto sombrio.

— E os relatórios extraviados?

— O arquivo municipal tem servidores. Servidores têm chefes. Chefes têm ambições. Encontre a ambição certa e a memória volta.

— E a entrevista?

— Compre o encarte inteiro da Aura de domingo próximo. E pague o dobro pelo espaço ao lado da capa. — Bebo outro gole de café. — Nele, vamos publicar a imagem menos importante que temos.

— Qual seria a menos importante?

Abro a gaveta, ergo a foto da minha mão segurando a de Aiden menino.

— Esta. Não prova nada. Mas lembra. E a lembrança é o começo do fim das certezas.

Camila assente, olhos brilhando de malícia disciplinada.

Às quinze, o Conselho Valmont ocupa a sala retangular de reuniões. Dezoito cadeiras, dezessete ocupadas — a décima oitava é a minha. Alguns tentam disfarçar o desconforto, outros se levantam rápido demais. Falo pouco. O suficiente.

— Durante cinco anos, vocês administraram o que é meu. Fizeram bem o bastante para continuarem sentados. Fizeram mal o suficiente para saberem que eu estou de volta.

As mãos se acertam sobre a mesa. Nenhum dos presentes me pede desculpas; ninguém com longevidade em poder pede desculpas — pede agenda. Eu ofereço o que nenhum deles esperava: tranquilidade operacional e guerra externa.

— A Valmont vai anunciar, em setenta e duas horas, um programa nacional de reconstrução de margens ribeirinhas — digo, projetando os slides. — Cem milhões de ardenes iniciais, auditados por três empresas internacionais, com rastreio público de cada centavo. — Pauso. — Não porque sejamos bonzinhos, mas porque somos capazes.

— E a onda de críticas? — pergunta alguém na ponta da mesa. — Dirão que é manobra de marketing.

— É. — Deixo que a palavra caia como uma pedra. — Marketing de integridade. Enquanto isso, observamos quem tenta imitar com dinheiro opaco.

Eu termino a reunião com uma única instrução adicional: nenhuma doação da Valmont, de nenhuma subsidiária, deve passar por fundações cujo conselho deliberativo inclua o nome Varela ou Castellani. Não agora. Não nos próximos meses. Uma seca planejada. Quem tem sede mostra o rosto primeiro.

No fim da tarde, a luz estilhaçada nos prédios desenha linhas laranjas no chão da minha sala. Camila retorna com novos relatórios e um envelope pardo.

— O que é isso?

— Correspondência antiga. Foi retida por ordem judicial quando você foi presa. Liberaram hoje, por “decurso de prazo”.

Abro. O papel cheira à espera. Uma única folha: “Serena, se você soubesse, me odiaria. Mas um dia vai entender.” Não há assinatura, só a caligrafia que eu reconheceria no escuro: Aiden.

Não sinto o golpe. Sinto a ciência. Ele escreveu isso no passado, quando a covardia ainda exigia caneta e não redes sociais. Ele sabia que me feriria. Tentou enfeitar a ferida com justificativa. Toda lâmina já veio um dia com fita.

— Quer que eu arquive? — pergunta Camila, cautelosa.

— Não. — Dobro a carta e a devolvo ao envelope. — Guarde no cofre. A lembrança precisa morar com as coisas caras.

O telefone vibra. Uma mensagem anônima, número mascarado: “Ele sabe que você saiu.”

Eu encaro a tela por um segundo alongado, e não respondo. Se ele sabe, que sinta. Se ele sente, que venha. Até porque, hoje à noite, eu irei até ele.

— A gala é às vinte. — Camila ajeita o paletó, profissional até no anúncio do inevitável. — Quer que eu a encontre lá dentro ou entre com você?

— Entre comigo. Quero que vejam quem você é. — Ergo o queixo. — E quero que ele me veja primeiro no reflexo, não no foco. O reflexo diz mais a verdade do que a frente do palco.

Camila sorri. Eu apago as luzes da sala. Ao fechar a porta, não levo nada que não esteja dentro de mim: disciplina, rancor, método. O elevador desce como uma sentença suave. Lá fora, Vidral acende suas lâmpadas; a cidade veste o brilho que esconde a lama.

Eu já caminhei por essa lama com os pés descalços.

Desta vez, vou atravessá-la sem me sujar.

E, quando eu chegar àquela mesa de honra, quando o vestido da patrona cintilar sob as luzes, quando Aiden elevar o queixo para o discurso, eu estarei sentada, invisível e presente, segurando o interruptor que acende e apaga qualquer verdade.

A vingança não começa no grito.

Começa na sala de vidro.

E a minha já começou.

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Comments

Dulce Gama

Dulce Gama

E Aide vc magoou s pobre de serena agora vc vai vê o que uma mulher faz por ser injustiçada 👍👍👍👍👍🌹🌹🌹🌹🌹🎁🎁🎁🎁❤️❤️❤️❤️❤️🌟🌟🌟🌟🌟

2025-09-16

0

bete 💗

bete 💗

ansiosa ❤️❤️❤️❤️❤️

2025-09-14

0

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