A noite desceu sobre a cidade, transformando a janela do apartamento de Cipora em um espelho escuro salpicado de luzes distantes. Ela preparava um jantar simples, o som da faca cortando legumes na tábua de madeira era o único ruído a quebrar o silêncio. Foi o cheiro do coentro fresco, picado em pedaços minúsculos, que a transportou. Um aroma terroso e vibrante que pertencia a outra cozinha, a outro tempo. A cozinha de sua mãe.
Sua mãe, Helena, era uma criatura de paixão e excessos. Ela não cozinhava, ela criava; não falava, declamava; não sentia, transbordava. A casa de sua infância era um palco para o temperamento artístico e volátil de Helena. Cipora se lembrou de uma tarde específica, ela devia ter uns oito anos. A mãe havia vendido seu primeiro quadro importante. A euforia dela era uma força da natureza. Ela dançou pela sala de estar, a saia colorida girando, a risada preenchendo cada canto do pequeno sobrado. Puxou a pequena Cipora para a dança, rodopiando-a até que o mundo se tornasse um borrão de cores e alegria.
Naquele momento, tudo era perfeito. A felicidade era algo físico, palpável.
Então, seu pai, Ricardo, chegou. Ele parou no batente da porta, a pasta de couro na mão, o terno cinza impecável. Ele não disse uma palavra. Apenas observou a cena com um olhar que não era de raiva, mas de algo muito pior: um cansaço profundo, uma decepção silenciosa. O sorriso de Helena vacilou e murchou sob o peso daquele olhar. A música foi desligada. A dança parou. A alegria evaporou, deixando um vácuo constrangedor no ar. "Helena, por favor. O exagero", ele disse baixo, e a palavra "exagero" soou como uma condenação.
Naquela tarde, a pequena Cipora aprendeu sua lição mais duradoura. Emoção em seu estado bruto era caos. Era barulhento, era colorido, era imprevisível. E, acima de tudo, era algo que gerava desaprovação e silêncio. A quietude de seu pai era uma força muito mais poderosa que a exuberância de sua mãe. A ordem, ela entendeu, sempre vencia o caos.
Essa lição foi o primeiro passo de uma coreografia complexa que ela passaria o resto da vida a aperfeiçoar. Na adolescência, a "Dança dos Sentimentos Reprimidos" tornou-se sua especialidade. Ela aprendeu a sorrir quando queria chorar, a concordar quando queria gritar, a ficar em silêncio quando tinha uma opinião apaixonada. Tornou-se uma observadora especialista do comportamento humano, antecipando o que os outros queriam dela e entregando com precisão. Era uma performance exaustiva, mas segura. Mantinha-a a salvo de olhares de reprovação, a salvo de ser "demais".
O resultado foi uma vida sem grandes tristezas, mas também sem grandes alegrias. Seus relacionamentos eram cordiais, mas superficiais. Suas conquistas, profissionais e calculadas. Ela havia construído uma fortaleza tão eficaz contra a dor que acabou por se isolar também de todo o resto.
A faca parou no meio de um corte. Ali, em sua cozinha silenciosa e organizada, Cipora se deu conta da verdade. Ela não era o oposto de sua mãe; era uma reação a ela. Havia herdado o mesmo rio de emoções, a mesma capacidade para sentir intensamente, mas em vez de construir um barco, passara a vida inteira construindo uma barragem. E o medo constante que a assombrava não era apenas de uma enchente. Era o medo de descobrir que, se as comportas se abrissem, talvez não houvesse mais rio algum, apenas a força destrutiva da água represada por tempo demais.
O telefone, esquecido sobre o balcão, vibrou de repente, o zumbido rasgando a quietude. O coração de Cipora deu um salto doloroso no peito. Na tela, um número desconhecido. A razão gritou para que ela não atendesse, para que se mantivesse segura em sua rotina. Mas o instinto, aquela criatura teimosa que morava em seus olhos, a fez estender a mão. A dança, pela primeira vez, teve um passo fora do ritmo.
...***...
Se está gostando não deixe de curtir pra mim saber e me segue no coraçãozinho, bjs.
❤⃛ヾ(๑❛ ▿ ◠๑ )
***Faça o download do NovelToon para desfrutar de uma experiência de leitura melhor!***
Atualizado até capítulo 43
Comments
Salete Michels de Gracia
É uma estória sem diálogo?
2025-09-16
0