O Labirinto dos Crimes
Ele se virou no labirinto e seus olhos, arregalados, encontraram a figura de Frei Miguel, ainda jovem, com o rosto puro de quem acreditava nas primeiras missas. Mas esse reflexo não era inocência — era acusação. O Frei o olhava em silêncio, como se dissesse: “Você se perdeu.”
O Inquisidor-Mór cambaleou, e cada passo que dava abria um novo corredor de espelhos. E em cada espelho ele se via… mas não sozinho.
Em um, via-se rindo enquanto uma mulher era despida à força nas masmorras.
Em outro, ele mesmo aparecia de olhos vidrados, assistindo crianças serem arrastadas para tonéis de água.
Em outro, via-se enfiando a mão em sacos de ouro entregues como recompensa.
Mais à frente, sua própria face surgia enlouquecida, de batina manchada de sangue, assistindo fogueiras crepitarem como se fossem festas.
Ele ergueu a voz, gritando para os reflexos:
— Isso não é crime! Isto foi santidade! Eu julgava em nome de Deus! Eu fazia provas, eu purificava!
E a gargalhada da Medusa ecoou, vinda de todos os lados ao mesmo tempo, acompanhada do chocalhar metálico de suas serpentes. O som era tão forte que fazia os vidros estremecerem.
Então, a voz dela preencheu o labirinto:
— Não, Tomás de Villalba. Você nunca serviu a Deus. Você usava o nome d’Ele como máscara. Quem você servia era Lúcifer, e o ouro era o seu altar.
Ele bateu contra um espelho, tentando quebrá-lo, mas só se encontrou multiplicado em mil cópias, todas cometendo os mesmos horrores.
— Não! — ele gritou, a voz embargada. — Eu era juiz da fé! Eu era o braço da Igreja!
A Medusa respondeu, fria e implacável:
— Os inocentes curavam. Você matava. Os simples rezavam. Você violava. As mães davam vida. Você roubava filhos e ateava fogo. Não invoque Deus aqui, porque foi o reflexo d’Ele que o julgou.
Ele caiu de joelhos, cercado por espelhos que mostravam seus crimes se repetindo, uma e outra vez, até a eternidade. As vítimas gritavam, choravam, se contorciam, e ele as via em cada vidro como se fosse a primeira vez.
E a Medusa sibilou, encerrando sua sentença:
— No meu labirinto, quem faz o julgamento é você mesmo. Eu apenas lhe mostro a verdade. E a sua verdade é podridão. Aqui ficará. Para sempre.
O inquisidor tentou tapar os olhos, mas não havia escuridão para se esconder. A cada vez que fechava as pálpebras, outro espelho se abria, refletindo sua degradação. O riso da Medusa ecoou como trovão, e o chocalhar das cascavéis o envolveu.
Ele gritou, mas não havia quem o escutasse. Apenas os reflexos. Apenas o juízo eterno.
PROÊMIO DA MEDUSA
A Medusa observava. Não precisava de altar, tampouco de templo. Bastava-lhe uma lâmina d’água, uma vidraça, o polimento frouxo de um cálice esquecido após a ceia, e ali — nas fronteiras onde a realidade se dobra para devolver um rosto — ela via a marcha lenta das culpas humanas. As fogueiras da Inquisição tinham deixado um rastro grosso de fuligem no tempo; porém o século adiante, na França dilacerada pela Guerra dos Cem Anos, ardia de modo diferente. Não eram só autos de fé. Eram campos lamacentos, estandartes rasgados, louros de reis frouxos, intrigas entre príncipes e prelados, e um povo exausto de promessas.
Ela, Medusa, não narrava por compaixão — compaixão fora um luxo quebrado quando lhe arrancaram a própria dignidade e a vestiram de monstro. Narrava porque o espelho guarda aquilo que os homens juram esquecer. E, como carrasca dos reflexos, conhecia os fios que se costuram entre o orgulho e a queda.
— Vocês pensam que tudo acabou na praça das fogueiras? — a voz dela poderia ser um sussurro no vidro do seu banheiro, um frio breve na água do seu copo. — Não. O fogo muda de nome, mas queima do mesmo jeito. Eu lhes mostrarei a jovem Joana, na França: camponesa, de olhos límpidos, escutada por vozes que nenhum tribunal consegue trancar. Eu estive nos reflexos ao redor dela. E quando os que a traíram procuraram água para lavar as mãos, eu estava na água.
No interior de Domrémy, a aldeia parecia um grão pousado entre bosques e riachos. Jeanne pastoreava, orava, trabalhava. Os passos dela eram pequenos, mas firmes; o rosto, simples como pão fresco. As mulheres do vilarejo diziam que o olhar da moça tinha uma claridade que o sol não sabia explicar. Jeanne não buscara glória. Buscara Deus — e, um dia, Deus respondeu.
Foi num fim de tarde alongado, o céu derramando ouro sobre as searas. A Medusa viu a cena como quem olha por detrás do verniz de uma tigela: em volta de Jeanne, o ar vibrou. São Miguel — o Arcanjo guerreiro, aquele mesmo cujo nome, cruzado em séculos, rompera orgulhos antigos — foi a primeira presença. Depois, Santa Catarina e Santa Margarida. A voz não veio aos ouvidos; veio ao coração. E o coração da moça entendeu: “Levanta-te. Há um príncipe encolhido atrás de seus receios. Diz-lhe que o Altíssimo ainda se lembra da França.”
A Medusa, que conhece o fio da vergonha nos poderosos, enxergou o Delfim Charles antes que Jeanne o visse. O jovem não era um monstro — isso seria simples demais. Era pior: era um hesitante. Carregava os ombros de quem nasceu para rei e aprendeu, cedo demais, a se acomodar na sombra. Tinha medos educados, conselheiros demais, e fé de menos.
Jeanne, entretanto, cruzou estradas, fortalezas, portas fechadas, risos de escárnio. Venceu primeiro a descrença do mundo, esse cerco sem muralha. Quando enfim chegou a Chinon, não tremeu sob o teto do castelo. Caminhou direto ao meio da sala e encontrou o príncipe escondido entre fidalgos.
— “Eu não vim por mim, senhor. Vim porque me mandaram.”
A Medusa, em silêncio de pedra, viu o rosto do Delfim vacilar. O que o moveu não foi só o testemunho da moça; foi a maneira como ela o via — não como ele era, um rapaz recuado, mas como poderia ser, rei. Havia nisso uma ousadia que nem os anjos costumam permitir. E, por um instante, o vidro de uma janela devolveu a cena com nitidez: o filho de um trono tolo a encarar uma camponesa com voz de céu.
Jeanne pediu armas, pediu cavalo, pediu trem de guerra. Não para si; para Orléans, que agonizava sob o cerco inglês. Os homens riram: não de maldade, de hábito. As guerras longas criam ceticismos que parecem prudência. A Medusa ouviu esse riso tantas vezes, seja diante das parteiras chamadas de bruxas, seja diante de uma jovem que fala com santos. O riso dos prudentes, quase sempre, é o prólogo da covardia.
Ainda assim, La Hire, Dunois, outros capitães calejados, cederam. Há momentos em que até um general veterano precisa da audácia de uma moça. Jeanne vestiu hábito de guerra — não deva isso a ninguém; custou-lhe um punhado de acusações futuras. Montou. Era leve sobre o arreio, e o estandarte que levava, com nomes santos inscritos, tremulava como se o pano tivesse sede.
— Eu a segui pelos reflexos da armadura de seus homens, diria a Medusa, se falasse ali. Pelo brilho suado das espadas, pelo metal no qual o sol brinca antes de a lâmina morder. Não por protegê-la; por testemunhar o que é raro: um povo lembrando sua coragem ao ver uma mulher com coragem.
Orléans percebeu a mudança antes da vitória. A mudança tem esse costume: chega nos olhos antes de chegar às muralhas. Os ingleses não enfrentavam só lanças e flechas; enfrentavam um rumor de fé. Jeanne não era estrategista genial — não precisava ser. Era um estopim. Dizia “vamos”, e homens que aprendiam a dizer “depois” desde a infância respondiam “agora”.
Houve combate nos boulevards, rompidos à força, labirintos de paliçadas e fossos, gritos que misturam medo e ímpeto até se confundirem. Jeanne tomava as baterias inglesas como se o corpo dela tivesse esquecido que era carne. Quando a flecha a feriu, ela caiu, mas não cedeu. A Medusa viu, num filete d’água que corria junto ao fosso, o reflexo do rosto da moça encharcado de dor e fé; viu também, no mesmo filete, os contornos vencidos de homens que mediam valor em pendões e começaram, por fim, a medí-lo em convicção.
Orléans foi libertada. A cidade acordou assustada de tão livre. Quando as campanas martelaram a novidade, o vidro dos vitrais tremeu; e a Medusa, acostumada a sussurrar no dorso dos reflexos, reconheceu na vibração um tipo de gratidão que a História raramente oferece às mulheres. Jeanne avançou, então, para Reims, porque um rei, para sê-lo de verdade, precisa do óleo sagrado, e isso nenhum conselho entrega — quem entrega é um altar. A comitiva cortou vales, desviou emboscadas, atravessou corações, que são mais duros que barreiras de madeira.
Em Reims, o Delfim tremeu outra vez. A claridade do sacrário ainda intimida os que governam sem fé. Mas o ar de catedral não escuta hesitações; escuta votos. Houve coroação. Carlos VII, por fim, foi ungido — e foi a mão de uma camponesa, segurando um estandarte à altura, que enrijeceu o instante para que ele não caísse. A Medusa viu o óleo derramado brilhar na prata da âmbula; viu também, no aro polido da coroa, o futuro: uma sombra de ingratidão assentando-se lenta, como poeira. Reis gratos têm pressa de mostrar-se. Reis covardes têm pressa de esquecer quem os ergueu.
A guerra não acabou com uma cerimônia — guerras que atravessam gerações são vícios herdados. Jeanne pediu que a deixassem prosseguir; a espada dela tinha mais a fazer do que escoltar procissões. E foi nesse período que a Medusa, rondando pela lâmina de água nas sarjetas, começou a detectar o velho odor: intriga. Borgonheses negociavam com ingleses, franceses disputavam entre si as ruínas, e a jovem que dava vitória passou a incomodar as geometrias de poder. Não há nada mais perigoso para um arranjo político do que uma fé que funciona.
Compiègne foi armadilha de sangue frio. A Medusa, que costuma cuidar das fronteiras entre mundos, distingue, sem esforço, a linha onde a coragem termina e a traição começa. Jeanne defendia a retirada de seus homens quando o portão se fechou atrás dela. Não foi acaso; foi cálculo. No metal do ferrolho, no brilho cínico do ferro que desliza, o reflexo devolveu à Medusa rostos escondidos: alianças mudas, dedos apressados em lucrar com a captura. Ela viu. O punhado de moedas que muda de bolso tem, quase sempre, a mesma expressão nos séculos: uma alegria curta, de quem vendeu algo que não poderia vender.
A Borgonha a entregou. E a venda teve preço contado — transferências frias, as somas de libras que se pagam quando se encerra um perigo sob pretexto de justiça. Jeanne foi levada a Rouen, onde a esperavam homens de batinas polidas, discurso torto e objetivos retos: calá-la. Entre eles, um nome que os espelhos gravaram com nitidez de rancor: Pierre Cauchon. Não lhes bastava vencê-la em campo; precisavam arrancar-lhe a legitimidade no tribunal, essa fogueira sem lenha que queima reputações e almas.
A Medusa viu a cela. Não descreveu misérias miúdas — a decência de quem narra exige pudor diante de certas dores. Notou, sim, o gelo das paredes, o pouco de luz que entrava pela cruz vazada da janela, o prato de estanho que devolvia um rosto cansado, mas intacto. Às vezes Jeanne chorava. Às vezes, calava com uma serenidade que os algozes chamariam de teimosia para mascarar o que temiam: convicção.
— Um rei fraco pensa que o silêncio o absolve, diria a Medusa, se pudesse interromper o credo dos cúmplices. Não absolve. O silêncio, em certos dias, é um carimbo de cera no documento da covardia. Carlos VII não moveu as chaves que poderia ter movido; não acionou as mãos que poderia ter acionado; a França, que dela recebeu espinha, foi deixando-a como quem se livra de um peso inconveniente.
O tribunal preparou o teatro. Paramentos, latim, artigos, acusações, e a velha estratégia que a Medusa conhece desde as masmorras de Salamanca: fazer parecer que o julgamento é acerca de doutrina quando, na verdade, é acerca de poder. Jeanne foi citada por vestir roupas de homem, por dizer que ouvira vozes do céu, por insistir em obedecer ao sopro místico mais do que ao medo. Em cada uma dessas imputações havia, escondido, o odioso: deter uma mulher que não coube.
Ela respondeu como quem sobe escada estreita sabendo que há saída no alto. Declarou que as vozes vinham de Deus, que São Miguel, Santa Catarina e Santa Margarida a guiavam, que nenhuma autoridade humana poderia calar o que o Altíssimo acendera. Os juízes sorriam com lábios finos — o sorriso dos que já sabem o veredicto e encenam a dúvida por protocolo. Um ou outro tentou enredá-la em ciladas teológicas; mas a fé verdadeira tem um tino que o sofisma inveja sem jamais aprender.
A Medusa, dos reflexos da janela, manteve-se à distância. Não interferia. Deus não cerceia o livre-arbítrio, repetiu para si, e o livre-arbítrio dos homens, quando escolhe punir o inocente, desenha a própria ruína. Os espelhos só colhem o que o homem semeia. Ainda assim, enquanto a moça respondia, a carrasca dos reflexos cravou no vidro o contorno das faces responsáveis. A justiça não é um trovão: é um mapa.
A noite caía como chumbo sobre Rouen. Jeanne rezava; não por salvação fácil, mas por constância. A Medusa, do outro lado do brilho opaco do prato, escutou sem devassar. Não há maior mistério do que a santidade em voz baixa. Cauchon e os seus tramaram o dia seguinte. Ajustes, redações, assinaturas. Alguns juraram estar a serviço da Igreja; a Medusa, que já vira inquisidores lavando culpa com água, mediu a distância entre a palavra “Igreja” e o gesto “cárcere”. Era grande.
Ao amanhecer, Jeanne foi levada à audiência derradeira. A Medusa a seguiu no metal polido das alabardas. O salão reuniu clérigos, homens de lei, curiosos. Os que deviam proteger não protegeram; os que deviam perguntar perguntaram para conduzir. Em torno do banco da ré, havia tentações armadas como alçapões: “retrata-te”, “assina”, “obedece”. Jeanne hesitou por um fio — não por falta de fé, mas por excesso de humanidade. Depois, firmou: “Se renunciasse àquilo que sei, mentiria diante de Deus. E eu, que sempre procurei a verdade d’Ele, não mentirei agora”.
Foi o bastante. As penas se alinharam. As vozes se fizeram unânimes num coro que tinha menos de sagrado e mais de conveniente. Ficou decidido: condenação. Não bastava claudicar a coragem dela; era preciso desfigurá-la perante a História. Aquilo que os séculos chamariam de martírio se escrevia com a letra de homens que dormiriam, naquela noite, com a barriga cheia.
A Medusa registrou cada um. No aro do tinteiro, a sombra dos dedos de Cauchon; na lâmina do punhal que cortou o lacre do decreto, o reflexo rápido do oficial; no vidro da lanterna pendida, as faces dos acompanhantes; no brilho das lágrimas de uma mulher anônima, o protesto impotente que o protocolo não ouve. O mundo dos espelhos não esquece, porque nele o tempo é um corredor sem poeira.
E assim Jeanne desceu a escada. Não ainda para a fogueira — a História gosta de prolongar humilhações —, mas para a cela novamente. A Medusa a viu pousar a cabeça sobre o braço e buscar repouso. Chorou? Talvez; ou talvez apenas tenha respirado, como quem entrega a própria vontade à Vontade Maior. A carrasca dos reflexos não viu pavor; viu claridade triste. A santidade não sempre sorri — às vezes permanece.
Na manhã seguinte, os sinos de Rouen se agitaram. A cidade, sem saber como se portar, dividiu-se: uns cuspiram; outros baixaram os olhos; alguns rezaram às pressas, temendo que a prece os denunciasse. A Medusa pairou no espelho da água de uma fonte, e ali, naquela superfície tremida, escreveu silenciosamente: “Mártir”. Não que seu gesto tivesse poder de canonizar — não fazia esse tipo de justiça. O que fazia era guardar a verdade do reflexo, para que um dia, quando a História se cansasse de mentir, alguém pudesse olhar e dizer: “Ali houve inocência”.
E, no entanto, não parou só por aí. Enquanto os homens amarravam a moça ao poste, enquanto papiros assinados com coragem emprestada circulavam, e enquanto a França fingia por um instante que não devia nada à pastora de Domrémy, a Medusa saiu da água e percorreu outras superfícies. O espelho do aposento onde Carlos VII dormia tarde demais. O metal polido da taça de Cauchon. A lâmina desapiedada de um punhal inglês. E murmurou — não como vingança sem regra, mas como quem lê uma sentença que os próprios homens escreveram ao escolher o mal:
— Deus não julga como vocês julgam. Deus deixa o homem ser livre. Mas eu… eu me tornei juíza do que os espelhos registram. Quem traiu a inocência não escapa da superfície que reflete. Eu recolherei cada um de vocês, no tempo certo, e os levarei ao meu labirinto. Lá, verão, em cada face do vidro, o que fizeram. E lá, o riso que hoje apresentam a si mesmos retornará como chocalho de serpentes.
Jeanne, amarrada, ergueu os olhos ao céu. Não pediu queda de fogo; pediu perdão aos que a queimariam. A Medusa calou — não por respeito a Cauchon ou a reis, mas por respeito ao milagre da firmeza. O capítulo ainda não se encerrara; o fogo ainda não cumprira seu rito; porém a carrasca dos reflexos já tinha o mapa dos culpados, e, nos corredores infinitos do Umbral, lugar reservado para cada um.
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Atualizado até capítulo 32
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