Assombrando Adeline

Assombrando Adeline

A Herança

A chuva caía fina sobre o capô do carro enquanto Adeline encarava os portões enferrujados da mansão Cardoso. O GPS insistia que aquele era o endereço certo, mas tudo nela gritava que deveria dar meia-volta.

A propriedade parecia esquecida pelo tempo. As janelas altas estavam cobertas por cortinas pesadas e empoeiradas, e as trepadeiras roxas subiam pelas paredes como dedos tentando escapar. O ar tinha um cheiro de terra molhada misturado com algo mais... algo antigo.

Ela destrancou o portão com a chave que recebera do advogado. O metal rangeu como se protestasse contra sua entrada. Cada passo até a porta principal parecia mais pesado que o anterior.

Dentro, o silêncio era absoluto. O hall de entrada estava mergulhado em sombras, iluminado apenas por um lustre apagado coberto de teias. No centro, uma escada em espiral levava ao andar superior, onde o corredor parecia observá-la.

Adeline passou os dedos pela parede, sentindo a textura áspera do papel de parede desbotado. Havia quadros antigos pendurados — rostos sérios, olhos que pareciam segui-la.

No escritório, encontrou uma caixa com documentos e um diário de capa de couro. O nome “Beatriz Cardoso” estava gravado em letras douradas. Ao abrir, a primeira frase a fez gelar:

> "Se você está lendo isso, é porque a casa escolheu você."

Adeline fechou o diário com força. O som ecoou pela sala como um aviso.

Ela não sabia ainda, mas aquela herança não era um presente. Era um convite.

Um convite para o desconhecido.

Adeline segurava o diário com mãos trêmulas. A frase inicial parecia pulsar em sua mente, como se tivesse sido escrita para ela — como se Beatriz soubesse que um dia ela estaria ali.

Ela se sentou na poltrona desgastada do escritório, o couro rangendo sob seu peso. A lareira estava apagada, mas havia cinzas recentes. Alguém estivera ali. Ou algo.

Virando as páginas com cuidado, ela encontrou rabiscos, desenhos de símbolos estranhos, e relatos de noites insones. Beatriz falava de sussurros vindos dos espelhos, de portas que se abriam sozinhas, e de uma presença que a observava enquanto dormia.

> "Ele está aqui. Sempre esteve. A casa é dele, e nós somos apenas hóspedes."

Adeline fechou os olhos por um momento, tentando afastar o arrepio que subia pela espinha. Quando os abriu, percebeu que a porta do escritório estava entreaberta. Ela tinha certeza de que a havia fechado.

Levantou-se devagar, o diário ainda em mãos. Caminhou até a porta e a empurrou com cautela. O corredor estava escuro, mas algo se movia no final — uma sombra rápida, como se alguém tivesse acabado de virar a esquina.

— Tem alguém aí? — sua voz saiu baixa, quase um sussurro.

Nenhuma resposta. Apenas o som distante de madeira rangendo, como passos no andar de cima.

Ela subiu a escada com o coração acelerado, cada degrau rangendo sob seus pés. No topo, o corredor parecia mais longo do que antes. As portas estavam todas fechadas, exceto uma — o quarto principal.

Adeline entrou. O quarto estava intacto, como se alguém ainda morasse ali. A cama feita, o espelho limpo, e sobre a cômoda, uma foto emoldurada: Beatriz, sorrindo ao lado de um homem de olhos escuros e expressão indecifrável.

Atrás da moldura, havia uma chave pequena e enferrujada. E um bilhete:

> "Não abra o quarto do sótão. Não importa o que ele diga."

Adeline sentiu o chão tremer levemente sob seus pés. A casa parecia respirar.

E ela sabia, naquele instante, que havia cruzado um limite invisível.

A mansão não era apenas velha.

Ela estava viva.

Adeline desceu do quarto com a chave enferrujada apertada na mão. O bilhete ecoava em sua mente: "Não abra o quarto do sótão. Não importa o que ele diga."

Mas quem era ele?

A escada que levava ao sótão ficava atrás de uma porta estreita no final do corredor. Ela nunca havia reparado nela antes — como se a casa tivesse escondido aquele acesso até agora. O trinco estava coberto por uma fina camada de poeira, mas a fechadura parecia ter sido usada recentemente.

Ela hesitou. A chave parecia pulsar em sua mão, quente, como se tivesse vida própria.

Ao girá-la, um estalo seco ecoou pela casa. A porta se abriu lentamente, revelando uma escada íngreme e escura. O ar ali era diferente — mais denso, com um cheiro de madeira velha e algo indefinido... como ferro e flores murchas.

Cada degrau rangia sob seus pés, e a luz fraca da manhã mal iluminava o espaço. No topo, o sótão era maior do que ela imaginava. Havia móveis cobertos por lençóis, quadros virados contra a parede, e no centro, uma cadeira de balanço que se movia sozinha, lentamente.

Adeline congelou.

— Beatriz? — ela sussurrou, sem saber por que disse o nome.

A cadeira parou.

Do outro lado do sótão, uma cortina balançava, revelando um espelho antigo, de moldura ornamentada. Mas o reflexo não mostrava o sótão — mostrava o escritório. E nele, alguém estava sentado na poltrona.

Ela se aproximou, o coração batendo como um tambor. Quando tocou o espelho, uma voz sussurrou atrás dela:

> "Você não devia ter vindo aqui."

Adeline se virou, mas não havia ninguém. Apenas o som da cadeira voltando a balançar.

Ela correu escada abaixo, trancou a porta do sótão e jogou a chave na lareira apagada. Mas sabia que não adiantaria. A casa havia acordado.

E ela agora fazia parte dela.

Adeline passou a noite em claro. O som da cadeira de balanço no sótão parecia ecoar em sua mente, mesmo com a porta trancada e a chave destruída. Ela tentou ignorar, mas a casa não permitia silêncio.

Às 3h17 da madrugada, todos os relógios da casa pararam. O ponteiro dos segundos girava ao contrário, como se o tempo estivesse sendo desfeito.

Ela desceu até o escritório, onde o diário de Beatriz permanecia aberto. Uma nova página havia surgido — ela tinha certeza de que não estava ali antes. A caligrafia era diferente. Mais firme. Mais recente.

> "Adeline, você precisa lembrar. A casa não escolhe por acaso. Ela chama os que têm sangue antigo. Os que carregam o nome. Os que sonham com portas que não existem."

Ela recuou, o coração disparado. Como o diário sabia seu nome?

De repente, um som metálico ecoou da cozinha. Como se algo tivesse caído. Ela correu até lá e encontrou uma caixa de madeira aberta sobre a mesa. Dentro, havia uma foto antiga — uma mulher idêntica a ela, vestida com roupas do século XIX. No verso, uma inscrição desbotada:

> "Adeline Beatriz Moura. 1875."

Ela caiu sentada, sem ar. A casa não era apenas uma herança.

Era um ciclo.

E ela acabara de recomeçar.

Baixar agora

Gostou dessa história? Baixe o APP para manter seu histórico de leitura
Baixar agora

Benefícios

Novos usuários que baixam o APP podem ler 10 capítulos gratuitamente

Receber
NovelToon
Um passo para um novo mundo!
Para mais, baixe o APP de MangaToon!