O carro avançava pelas ruas cinzentas silencioso, apenas o ronco do motor preenchendo o ar pesado. Helena olhava pela janela, mas nada parecia real. O cemitério ficara para trás, mas a presença da mãe ainda pairava sobre ela, misturada à sensação de ameaça que não conseguia afastar.
Rafael dirigia com cuidado, percebendo cada trejeito da mulher ao seu lado. Ela não chorava mais — ao menos, não de forma visível —, mas o aperto na mão que ele segurava denunciava que a dor permanecia crua, tão viva quanto no instante em que o caixão desceu.
— Helena… — começou, hesitante. — Algo errado?
Ela balançou a cabeça, tentando afastar o pressentimento.
— Não sei… É só… — suspirou, a voz trêmula — …uma sensação ruim.
O carro dobrou na esquina e, no reflexo do retrovisor, Helena percebeu algo. Um homem em terno escuro, parado na calçada, olhando para ela com atenção meticulosa. Piscou, e ele já não estava mais ali.
O coração acelerou. O vento frio do enterro ainda parecia seguir cada passo. Ela apertou o cinto de segurança com força, sentindo a presença invisível de olhos desconhecidos.
— Recebi um bilhete. — Murmurou, finalmente. — Mancini… ele me mandou um aviso.
Rafael franziu a testa, a tensão aumentando.
— Um aviso? Que tipo de aviso?
Ela olhou para ele, os olhos carregados de desespero e determinação.
— Que a guerra começou. E que ele sabe que estou vulnerável.
O resto do caminho até casa foi silencioso. Cada sinal, cada sombra, cada carro que passava parecia carregar um segredo. Helena sentia o peso real da sentença: não havia mais volta. O inimigo não estava apenas atrás das grades. Ele estava lá fora, no mundo, e, de algum modo, sempre à frente dela.
Ao abrir a porta de casa, o cheiro familiar não trouxe conforto. Era como se o luto tivesse impregnado cada parede, cada móvel, transformando a casa em uma prisão de memórias dolorosas. Rafaela estava sentada no tapete da sala, brincando com a boneca de pano, inocente, alheia a tudo.
Helena se aproximou, ajoelhando-se para ficar na altura da filha. Passou os dedos pelos cabelos loiros da menina, respirando o cheiro infantil que precisava guardar com todas as forças.
— Mamãe vai ficar com você, meu amor. — Murmurou, firme, mesmo com o coração ainda em pedaços. — Sempre vou proteger você.
Mas, por trás da máscara de fortaleza, o pressentimento persistia. O bilhete, os homens no cemitério, a presença invisível que sentira na rua… tudo indicava que Mancini não esperaria mais.
E, naquele instante, Helena compreendeu que não bastaria coragem. Seria necessária estratégia, vigilância… e a certeza de que, daqui para frente, cada passo seria vigiado, cada movimento observado.
A guerra que começara no tribunal continuaria agora em sua vida, silenciosa, sorrateira, e mortal.
A noite havia caído sobre a cidade, mas Helena não encontrava descanso.
Cada estalo da madeira da casa soava como um passo.
Cada sombra projetada pela luz dos postes se esticava como se quisesse invadir suas paredes.
Ela fechou todas as janelas, conferiu a porta duas vezes, mas a sensação persistia: alguém a observava.
Não era apenas medo comum — era como se os olhos de Mancini atravessassem os muros da prisão e pousassem diretamente sobre ela.
O relógio marcava pouco depois da meia-noite quando o telefone da sala tocou uma vez.
Apenas uma.
O som abrupto a fez gelar. O aparelho em seguida ficou mudo, sem registro de chamada.
O silêncio voltou, mais sufocante do que antes.
Helena percorreu a casa, desligou o abajur e se deixou cair no sofá, abraçando os próprios joelhos.
Lembrou-se das palavras ditas no enterro: “Recados não são apenas dados. Eles se repetem.”
Ela sabia que não era imaginação.
Lá fora, do outro lado da rua, o farol de um carro apagado piscou duas vezes antes de sumir.
O vento batia contra as árvores, mas Helena jurava ouvir passos no quintal.
Levantou-se devagar, pegou a faca de cozinha mais próxima e foi até a janela. Nada. Apenas galhos se movendo.
Mesmo assim, a sensação persistia: alguém estava ali, olhando.
De manhã, ao abrir a porta para pegar o jornal, encontrou um envelope sem remetente.
Não havia selo, não havia assinatura. Apenas uma folha de papel datilografada com letras frias:
“Você já sabe que não está sozinha.”
A mão dela tremia ao amassar o bilhete. Correu para dentro, trancando-se como se as paredes fossem capazes de protegê-la.
Pouco depois, o som da campainha a fez estremecer.
Era a babá de Rafaela, os olhos baixos, o semblante aflito.
— Dona Helena… — a voz embargada denunciava o pânico. — Eu sinto muito, mas… não posso mais continuar. Não é seguro.
— Como assim, Marta? — Helena agarrou o braço da mulher, quase em desespero. — Você está aqui há dois anos. Rafaela confia em você… eu confio em você.
A babá respirou fundo, desviando o olhar.
— Eles me procuraram. Eu não vou arriscar a vida da minha família. — E, sem esperar resposta, entregou as chaves e se afastou.
Helena ficou parada na porta, sem ar, observando a única pessoa em quem podia confiar desaparecer na rua.
O vazio da casa a engoliu.
O silêncio agora não era só inquietante — era mortal.
E, lá de cima, do quarto da filha, ouviu o leve rangido do assoalho.
Subiu correndo.
Rafaela dormia, tranquila.
Mas a janela estava entreaberta, apesar de Helena ter certeza de que a fechara na noite anterior.
Helena passou a tranca da porta principal pela terceira vez naquela noite. O silêncio da casa era tão frágil que qualquer estalo parecia um grito. A cada passo, o parquet rangia sob seus pés como se acusasse sua presença.
Ela tentava se convencer de que era apenas cansaço, paranoia alimentada pelo luto.
Na manhã seguinte, a tensão ganhou corpo. Um envelope amarelado, sem remetente, repousava sob a porta. Dentro, apenas uma foto dela e de Rafaela no parque, tirada sem que percebesse. Atrás, rabiscado em letras tortas: “Cuidado com quem põe os olhos em você.”
Helena deixou a carta cair no chão, as mãos trêmulas. Correu até o quarto da filha, encontrando-a ainda dormindo, pequena e alheia ao peso que desabava sobre a mãe.
O relógio na parede marcava cada segundo com um som alto demais, como um lembrete cruel do tempo que passava.
Helena observava pela janela quando a campainha tocou. O coração disparou, mas ao abrir a porta encontrou um rosto familiar — firme, sereno, mas carregado de tensão.
— Luh… — o alívio escorreu em sua voz.
A detetive, de blazer escuro e expressão cansada, entrou sem pedir permissão, o olhar percorrendo cada canto da sala.
— Eu tinha que vir — disse, em tom baixo. — Depois do que aconteceu no enterro, eu não confio em deixarem você sozinha com sua filha. Mancini pode estar atrás das grades, mas as mãos dele continuam soltas.
Helena respirou fundo, contendo a vontade de desabar.
— Eu não consigo dormir, Luh. Qualquer sombra parece um vulto. Qualquer barulho faz meu coração quase sair pela boca. E agora até a babá desistiu… — a voz falhou. — Estou sozinha com Rafaela.
Luh pousou uma mão firme no ombro dela.
— Você não está sozinha. Eu já falei com o juiz responsável. E a ordem é clara: reforço policial imediato. Dois homens vão fazer a ronda pela rua, e outros dois ficarão dentro da casa. É temporário, mas necessário.
Helena engoliu seco, um misto de alívio e constrangimento.
— Eu não queria transformar meu lar em uma prisão… mas é melhor do que ver minha filha em risco.
Luh assentiu.
— Segurança não é prisão. É estratégia. Mancini gosta de jogar com o medo, mas medo também pode ser arma, se você aprender a usá-lo.
Nesse instante, o som de um carro estacionando diante da casa fez Helena estremecer. Dois policiais uniformizados desceram, caminhando com passos firmes até a porta. Luh abriu, apresentou-se e coordenou rapidamente a entrada deles.
— Helena, a partir de agora, ninguém chega perto de vocês sem passar por mim ou por eles. — A detetive ajeitou o coldre na cintura e completou, em tom cortante: — Se Mancini acha que pode encostar um dedo em você ou na sua filha, ele vai descobrir que não está lidando com uma vítima. Está lidando com uma caçadora.
Helena respirou fundo. Pela primeira vez em dias, sentiu que havia um fio de controle em meio ao caos. Mas sabia, no fundo do peito, que aquela era apenas a calmaria antes da próxima tempestade.
A primeira noite com seguranças foi estranha para Helena. Os passos firmes dos policiais ecoavam pelos corredores, lembrando a cada instante que a vida havia mudado. O silêncio da casa, antes pesado, agora era quebrado por vozes baixas e o tilintar metálico das armas sendo verificadas. Rafaela adormeceu no quarto ao lado, protegida, mas o coração da mãe permanecia em alerta.
Na sala, Helena se acomodou no sofá, tentando se convencer de que estava segura. Luh não se sentava — circulava pela casa como uma sombra, olhos atentos a cada detalhe. A detetive parecia respirar junto com as paredes, pronta para agir a qualquer sinal.
Pouco depois da meia-noite, o ronco discreto de um motor rompeu a calmaria. Os policiais de plantão se entreolharam, indo em direção à janela. Helena se ergueu, nervosa.
Um carro preto parou diante da casa. Nenhum farol ligado. Nenhum movimento. Apenas a presença incômoda de quem queria ser notado.
Antes que qualquer policial pudesse reagir, Luh se moveu. Em um gesto rápido, puxou a arma, abriu a porta da frente e avançou até a varanda.
— Identifiquem-se! — gritou, a mira firme.
O silêncio respondeu. O motor continuou roncando, lento, provocativo.
Então, um estalo seco rasgou a noite.
BANG!
O disparo de Luh acertou o asfalto a centímetros do pneu dianteiro, ecoando pelas ruas escuras. O carro arrancou imediatamente, derrapando, desaparecendo na curva sem deixar rastro.
Helena, parada na porta, observava a detetive baixar a arma com calma quase sobrenatural.
— Eles vão testar seus limites, Helena — disse Luh, sem desviar os olhos da estrada vazia. — Mas não se preocupe. Aqui dentro, quem dita as regras sou eu.
O peso da ameaça era real, mas, pela primeira vez desde a morte da mãe, Helena sentiu um fio de esperança: não estava mais sozinha.
Até às próximas linhas.
G.sandles
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Atualizado até capítulo 31
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