O vento naquela manhã trazia mais do que areia. Era salpicado de lembranças.
Elian observava o deserto dourado de Tliwni a partir das janelas em arco da Sala de Cristal, os olhos perdidos entre os reflexos da luz contínua no mármore opalino. A claridade o rodeava por todos os lados, mas por dentro, algo sempre permanecia em penumbra — como se um pedaço de si nunca tivesse voltado de Alese.
Ali, naquele lugar longínquo e isolado deste mundo, Alese pulsava como um santuário de exceções. Ele se recordava da primeira vez em que viu uma espécies antes consideradas rivais por natureza rindo juntos. Um povo de chamas e outro de mares. Em Tliwni, aquilo seria tratado como uma profanação. Em Alese, chamavam de aprendizado.
— Você ouve, Elian? — dizia uma dos professores élficos, com as mãos pintadas com argilas azuis. — A língua de um povo é mais do que som. É a dor deles cantando memória.
Aqueles dias haviam sido um clarão dentro da sua alma. Dormia em dormitórios abertos, com camas próximas umas às outras, sem véus ou status que separassem corações. Compartilhava refeições apimentadas com os Dóruh, ou escutava poemas de morte dos Belyssianos, um povo de olhos negros como obsidiana e pele acinzentada que via beleza na dor.
Aquele mundo diverso o moldara. E agora, de volta, Elian se sentia um intruso em sua própria casa.
— Um príncipe não se curva a exóticos. — dissera Varkas em um de seus ataques disfarçados de conselho. — Ou você deseja nos ver tomados pelas aberrações do subterrâneo também?
Aberrações.
A palavra lhe queimava a garganta.
Seus pensamentos foram cortados pela aproximação de passos secos. Era Caelen.
Sempre ele.
Sempre firme.
Sempre certo demais.
O rival aproximou-se com a postura reta, os ombros largos envoltos no manto militar de pedra-solar. Seus olhos, como um corte de gelo âmbar, pousaram sobre Elian com a mesma avaliação que um sacerdote dedica a um herege.
— Pensando em Alese de novo? — perguntou, sem rodeios. — Um mundo longe demais para importar aqui.
— Importa quando nos prova que a paz é possível.
— A que custo? — Caelen cruzou os braços. — Em Alese, vocês vivem como se o sol não reinasse absoluto. Aqui, o equilíbrio depende de ordem. E a ordem não se sustenta sobre ideais.
— Então sobre o que ela se sustenta? — Elian virou-se lentamente para ele, a voz baixa, mas firme. — Medo? Opressão? Dogmas que ninguém mais entende?
Caelen não respondeu. O silêncio entre eles era tão cortante quanto qualquer espada. Mas antes que as palavras inflamassem mais, o eco de sinos vindos do saguão os interrompeu.
Mensageiros vinham do Portão de Ametista, com notícias sombrias.
O Conselho havia sido alertado. Um viajante solitário fora visto vagando pelas trilhas abandonadas do cânion, com pele pálida demais e olhos que brilhavam como estrelas mortas. Os guardas relataram que o homem não temia o sol — mas tampouco o reverenciava. Vestia trapos cerimoniais de outra era, desbotados pela ausência de fé.
O Lunari remanescente havia se revelado.
Na Câmara do Leste, a sacerdotisa já intercedia, incitando a convocação de uma vigília, uma purificação. Seus discursos ecoavam sobre os pilares como orações esculpidas em pedra:
— Se o deserto eterno for ameaçado, os Krophegar’s responderão. Não toleraremos víboras que rastejam para fora das sombras!
Caelen assentia. Elian silenciava.
Mas o príncipe sabia. Algo naquelas aparições não era mero acaso. E os olhos de seu tio Varkas, tão atentos à movimentação do conselho, lhe deixavam inquieto.
Varkas Noctaris, o lorde de fala untuosa, começava a se mover com mais frequência nos bastidores. Conversas abafadas com emissários noturnos, pedidos para inspecionar as torres abandonadas do sul, e agora, curiosamente, uma solicitação para transferir parte da guarda real — sob o pretexto de reforçar a fronteira contra os “subterrâneos impuros”.
Mas era só isso?
Elian começou a suspeitar que seu tio via mais na ameaça do que dizia em voz alta. Que talvez... ele estivesse ajudando a abrir as portas para esse novo confronto.
...***...
No pátio de treino, onde as sombras eram mais longas e a areia mais vermelha, Thalion o encontrara novamente.
— Primo! — disse, saltitando entre os corredores, os braços cheios de papiros. — Você precisa me contar sobre os Dóruh! É verdade que eles nadam como cobras nas fontes? E que dormem em redes penduradas?
— Thalion... agora não. — disse Elian, tentando sorrir apesar do peso no peito.
Mas o jovem continuava, os olhos brilhando com admiração. Havia uma doçura nele que fazia Elian hesitar. O garoto não fazia ideia de quem seu pai realmente era. Nem de que talvez estivesse sendo usado como isca ou distração.
Como contar a alguém que gosta que o coração do próprio pai pulsa com veneno?
Naquela noite, Elian saiu sozinho.
Andou pelas vielas douradas de pedra, onde as tochas nunca se apagavam. Desceu até os jardins sagrados, onde cada flor era podada para seguir simetria divina. Sentia-se estranho entre o que fora feito para parecer perfeito. Como se todo aquele reino estivesse tentando sufocar sua essência.
Caminhou até o antigo altar dos Krophegar’s — não aquele usado pela sacerdotisa, mas um mais antigo, esquecido. Coberto de areia e musgos lunares.
Ajoelhou-se.
Não para orar.
Mas para sentir.
Sentir se havia algo ainda vivo ali. Alguma resposta. Alguma direção.
Mas os deuses permaneceram em silêncio.
Apenas o vento respondeu. Soprando do oeste, carregando areia escura.
O sinal do movimento.
...***...
Os ventos rarefeitos de Tliwni sopravam com uma constância abafada naquela manhã dourada, como se o próprio deserto segurasse a respiração.
O tempo parecia imóvel, mas nos corredores do palácio, tudo se movia — como se estivessem todos correndo de algo que ainda não tinha forma. Elian cruzava o corredor ocidental, as mãos entrelaçadas atrás das costas e os olhos distantes, ouvindo pouco do que os conselheiros tentavam dizer. Suas lembranças de Alese ainda estavam muito vivas.
Era como se os jardins de musgo azul de Alese tivessem deixado raízes dentro dele. Lembrava-se da risada musical dos Jh’ae, uma espécie anfíbia que falava com cantos, e da forma como os Rakorid se cumprimentavam encostando as testas, como se dividissem pensamento e calor. Em Alese, espécies que antes duelavam agora dividiam fontes termais e bibliotecas. Nenhum deles havia esquecido suas guerras — apenas escolheram, conscientemente, parar de sangrar.
Elian acreditava nisso. Acreditava que a memória podia ser um altar e não uma prisão.
Mas a Aurora parecia uma terra esquecida pela delicadeza.
— Meu sobrinho me parece mais distraído a cada dia — comentou Varkas Noctaris com um meio sorriso, mais aos servos do que a qualquer um em particular. Ele deixava sementes de dúvida como quem derrama sal na areia: semeando infertilidade.
Elian ouviu, mas não respondeu. O jogo era mais velho que os muros do palácio. Ao virar um corredor, deu de cara com Caelen, cuja postura marcial parecia sempre pronta para combate, mesmo que a guerra fosse apenas de palavras.
— Pensando em ceder os salões do Leste aos Sartharid, Alteza? — perguntou o Dracanthe com o habitual tom de desdém. — Ou vai deixá-los dormirem no templo, junto aos Krophegar’s?
Elian manteve o rosto sereno.
— Você sempre fala antes de escutar, Caelen. Em Alese, isso era sinal de fraqueza.
— Aqui é Aurora, não Alese — retrucou ele, com um passo mais próximo. — E o sol não se curva ao luar, por mais suave que ele deseje parecer.
Seus olhos se prenderam por um instante — um conflito de vontades e mágoas jamais ditas. Havia algo mais denso que o orgulho ali. Uma frustração antiga, alimentada pela saudade de algo que nunca chegou a acontecer.
Foi então que a luz do dia pareceu oscilar.
A presença do Lunari de linhagem Lunariana pura era como uma ausência sentida. Surgia sem som, sem calor, como um sussurro vindo do fim do mundo. Seus olhos eram como poços escuros, onde o céu noturno ainda existia. Ele não se curvava. Andava entre colunas e corredores sem ser anunciado, e mesmo assim todos o viam — com temor.
A dias não conseguiam capturá-lo, ele escorregava como areia entre os dedos. Ele aparecia e sumia como um fantasma.
A sacerdotisa o observava de longe, com a mesma repulsa que teria por uma oferenda feita com mãos sujas.
— Ele deveria ser mantido longe dos altares — sussurrou ela ao ouvido de Caelen. — O escuro que ele carrega nas veias é a antítese do Norte, do Leste, do Sul e do Oeste. O equilíbrio exige luz.
Mas Caelen hesitou. Nem por medo — mas por intuição. A fé que o Lunari carregava era uma lâmina velha, esquecida, mas ainda afiada. Ela brilhava com verdades desconfortáveis.
Enquanto isso, Thalion seguia o primo como uma sombra tagarela, entusiasmado com a perspectiva de mais histórias sobre Alese, inconsciente de que seu pai urdia conspirações no salão de pedras.
Elian, por sua vez, começava a perceber a rede fina de cumplicidades e omissões. Um mapa de intenções desenhado nos rostos dos nobres.
Na ala leste, ouviram-se murmúrios — falava-se de uma mina abandonada no sopé da Serra de Aren, onde antigos túneis teriam sido reativados. Seriam eles apenas abrigos? Ou corredores de um novo culto?
O Lunari remanescente caminhava por esses túneis.
E o mais alarmante: havia olhos solares que o guiavam até lá.
Elian fitou a janela aberta para o horizonte dourado. Seu reflexo mostrava não apenas o herdeiro rebelde, mas o jovem ainda marcado por cada despedida, cada esperança que não se realizou.
O palácio, aos poucos, tornava-se um campo de areia movediça. E todos os sorrisos — de Varkas, da sacerdotisa, de Caelen — pareciam conter espinhos ocultos.
Mas Elian também aprendera algo em Alese.
Nem toda batalha precisa começar com espada.
Algumas se vencem apenas por permanecer de pé.
E ele ficaria.
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Atualizado até capítulo 51
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