Coisas que a memória nunca esquece

A manhã chegou silenciosa, como se respeitasse o modo sereno com que ela redescobria cada canto da cidade. Havia algo de íntimo em caminhar por aquelas calçadas estreitas, onde o passado ainda sussurrava pelas janelas abertas, pelo aroma das padarias que ainda usavam as mesmas receitas, pelas flores que insistiam em brotar nos mesmos jardins.

Com um livro debaixo do braço, como quem leva consigo um pedaço do próprio abrigo, ela descia pela rua de paralelepípedos onde ficava a antiga livraria da Dona Rosa. A fachada azul desbotado continuava a mesma, com os vasos de samambaias balançando preguiçosamente ao vento, como se lhe dessem as boas-vindas.

Ao empurrar a porta de madeira, o sino soou familiar — o mesmo som agudo que anunciava novas descobertas. O cheiro de papel envelhecido misturado com café recém-passado era como um abraço antigo. Ela caminhou devagar entre as estantes, os dedos percorrendo as lombadas dos livros como se fossem memórias.

Foi ali, entre os clássicos da prateleira mais escondida, que ela o viu.

Vicente.

Estava com um livro nas mãos, concentrado, quase alheio à presença dela. Usava uma camisa cinza simples, as mangas dobradas até os cotovelos, e os cabelos um pouco mais bagunçados do que da última vez. Ele ergueu os olhos ao perceber que não estava sozinho.

— Ei — disse ele, com um sorriso sereno. — Não sabia que ainda vinha aqui.

— Fazia anos que não entrava, mas... é como se nada tivesse mudado — respondeu, a voz suave, os olhos passeando pelas prateleiras. — E você?

— Sempre venho. Gosto de conversar com os livros... eles não exigem respostas rápidas.

Ela sorriu.

— Isso soa como algo que você sempre diria.

Vicente se aproximou com um livro nas mãos.

— Já leu esse aqui? — perguntou, mostrando a capa.

Ela examinou, reconhecendo o nome do autor.

— Não... ainda não.

— Acho que você vai gostar. É do mesmo autor daquele outro... aquele que você lia na varanda, quando estava com medo da tempestade, lembra?

Ela ficou em silêncio por um instante, absorvendo a lembrança.

— Você ainda lembra disso?

— Lembro — disse ele, com um brilho suave no olhar. — Lembro de muita coisa.

Ficaram ali, por um instante, cercados de histórias impressas e outras tantas não ditas. Um tempo suspenso, onde tudo que foi dito carregava muito mais entrelinhas.

Ao saírem da livraria, caminharam juntos até a casa dela. O sol já ia baixando, tingindo os muros de dourado. Quando chegaram ao portão, ele parou e olhou para ela.

— Se quiser conversar mais sobre o livro... ou sobre qualquer outra coisa... — disse, quase num tom de convite disfarçado.

— Eu aviso — ela respondeu, sorrindo de leve.

Ele assentiu com um sorriso contido, e partiu.

Ela entrou em casa com o livro nos braços, e foi direto para a varanda, onde o céu começava a se pintar em tons de lavanda e cinza. Sentou-se, abriu o livro e deixou-se levar pelas palavras, mas sua mente ainda vagava entre as pausas da conversa com Vicente.

Não percebeu o tempo passar. Até ouvir a voz conhecida, arrastada e levemente zombeteira.

— Achei que você ia me ignorar pro resto da vida.

Ela ergueu os olhos e encontrou Luca encostado no portão, sorrindo com aquele ar de quem nunca leva nada tão a sério.

— Você fala como se eu devesse alguma coisa — respondeu ela, fechando o livro com um marcador improvisado.

— Deve, sim. Uma casquinha de baunilha com cobertura de chocolate. E talvez um pedido de desculpa por ter sumido por tanto tempo.

Ela riu. Ele empurrou o portão e entrou sem cerimônia, como quem sempre teve permissão.

— Pode? — perguntou, apenas por educação.

— Já entrou.

— Então tá liberado.

Luca se acomodou na cadeira ao lado dela, os braços apoiados no encosto, as pernas esticadas, o sorriso ainda brincando nos lábios.

— Tá mais bonita. Quase não te reconheci de primeira.

Ela arqueou a sobrancelha.

— Quase?

— É. Aí você me olhou com aquela cara de “será que esse ser humano ainda existe?”, e eu pensei... opa. É ela.

Ela riu de novo. Era fácil rir com Luca. Ele tinha esse jeito de desmontar qualquer barreira com um comentário bobo, uma lembrança fora de hora.

— Sabe o que eu pensei quando te vi lá no festival? — ele continuou.

— O quê?

— Que era bom demais pra ser verdade. Aí quando você olhou pra mim daquele jeito... pensei, "oxe, será que ela ainda lembra da gente tomando sorvete com granulado até cair no chão?"

— Como esquecer?

— Então... vamos?

— Agora?

— Claro. Vai que você foge de novo. Tenho que aproveitar.

Ela hesitou, depois sorriu. E foi. Caminharam pela rua conversando sobre o passado, sobre bobagens, sobre o quanto a sorveteria continuava igual, até o senhorzinho com o avental manchado estava no mesmo lugar.

— Dois de baunilha com granulado? — perguntou Luca, antes de ela responder.

Ela riu.

— Ainda sabe?

— Algumas coisas não mudam.

Sentaram-se no banco em frente à praça. O céu já escurecia, e as luzes da cidade começavam a se acender devagar. Ela olhou para ele, que agora brincava com a colher plástica, e pensou como tudo parecia ao mesmo tempo distante e perto. O conforto de Luca era diferente do silêncio cheio de significado que havia com Vicente. Cada um despertava nela algo único, ainda indefinido.

Ela sabia que estava voltando para algo maior do que só lembranças.

Estava voltando para ela mesma.

E no fundo... talvez fosse isso que mais assustava.

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Comments

Severa Romana

Severa Romana

chata! já vi que ela vai ficar indecisa entre os dois irmãos..detesto triângulo amoroso...vou parar

2025-07-29

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