oque o silêncio carrega

Levei duas noites observando a clínica antes de entrar.

Ficava num prédio bonito, fachada espelhada, recepcionistas sorridentes. “Clínica Gonzales e Associados” — diziam as placas nas paredes. Crianças subiam as escadas segurando as mãos dos pais, mochilas nas costas, alguns sorrindo, outros desconfiados.

O consultório de Alejandro ficava nos fundos do segundo andar. Um corredor discreto, papel de parede bege, luz fria. Não tinha câmera dentro da sala. Só na recepção. Isso facilitava.

Fingi ser entregador. Cheguei no fim do expediente, carregando uma caixa com lacre de segurança, vestindo uniforme emprestado de uma firma que já não existia. Dei bom dia, sorri, segurei a porta com o pé. Disseram que ele já havia ido embora. Melhor ainda.

Fui até a sala. O cartaz na porta dizia “Doutor Alejandro Gonzales — Pediatria e Desenvolvimento Infantil”.

A fechadura era simples. Estava trancada, mas levei 40 segundos para destravar. Entrei. A luz de presença acendeu devagar. O ambiente era silencioso. Cheirava a álcool e madeira velha. Era organizado demais.

Instalei os dispositivos rápido:

— Um microfone interno no ventilador de teto

— Um segundo, menor, no porta-canetas

— Um rastreador passivo no roteador da clínica

— Uma microcâmera falsa, só para despistar caso alguém procurasse outra

Deixei tudo como estava. Nenhuma digital. Nenhuma marca. Saí tão fácil quanto entrei.

Naquela noite, no subsolo da minha casa, conectei os equipamentos e comecei a ouvir.

As primeiras horas foram comuns. Conversas de pais. Brincadeiras de crianças. Diagnósticos básicos.

Mas então…

Portas sendo trancadas. Vozes mudando de tom. Crianças ficando caladas. Um "shhh" suave demais. Sons abafados.

Eu parei de respirar.

Não havia palavras claras. Não havia descrições. Mas havia algo ali que qualquer homem que já viu o inferno reconhece.

Aquilo era abuso. Velado. Treinado. E repetido.

Fechei os olhos. Lembrei do grito da minha mãe, abafado atrás da porta do meu quarto, quando eu tinha seis anos. O cheiro do sangue no corredor. O silêncio depois.

Levantei. Lavei o rosto. Voltei ao computador.

Abri arquivos antigos. Cruzei informações. E então encontrei o nome:

Camila Martinez.

Mãe de Ana Laura.

Camila havia feito atendimentos com Alejandro há mais de duas décadas. Depois, desapareceu. Um boletim perdido relatava "relação não-oficial com médico da cidade", seguido de "desaparecimento não investigado".

Meses depois… Ana nasceu.

Minha mandíbula travou.

Ana era filha dele? Ou vítima dele também? Ou as duas coisas?

Respirei fundo.

Fechei o laptop.

E pela primeira vez em muito tempo, eu queria matar alguém sem contrato nenhum.

(Ana Laura)

O alarme tocou às 06h40.

Eu já estava acordada.

A ansiedade não me deixara dormir. A entrevista seria às 09h, e eu só pensava se iriam me aceitar. Não pelo currículo — que quase não existia — mas pelo jeito como me olhariam. Eu nunca me senti confortável sendo avaliada. Nem por professores. Nem por olhares de esquina.

Vesti a blusa menos amassada que consegui achar. Calça jeans escura, tênis antigo. Prendi o cabelo em um coque simples. Maquiagem nenhuma. Perfume barato. E fé — do tipo que você inventa quando não tem escolha.

Peguei o ônibus no centro. A livraria ficava em uma rua movimentada, ao lado de uma floricultura. Chamava “Palavras Antigas”. As letras da fachada eram tortas, como se tivessem sido pintadas à mão. Gostei daquilo.

Fui recebida por uma mulher baixa, de coque cinza e olhos bons.

— Ana Laura?

— Sim. Vim pela vaga de faxina, meio período.

Ela me olhou de cima a baixo. Não com julgamento, mas como quem tentava medir se eu aguentaria a rotina.

— Já trabalhou com limpeza?

— Na prática, sim. Na carteira, não.

Ela sorriu com o canto da boca.

— Honestidade é um bom começo. Você pode começar segunda. Se quiser.

Meu coração deu um salto.

Assenti com força.

— Muito obrigada. De verdade.

— Chegue às 13h. Você cuida da parte do escritório, estoque e banheiro. Nada pesado. E pode ler os livros nos intervalos, se gostar.

Saí de lá leve.

Feliz.

Nem o calor sufocante das ruas me incomodou no caminho de volta.

Peguei o ônibus de novo, desci perto de casa, atravessei duas vielas até o sobrado onde morávamos havia anos.

Minha abuelita estava sentada na varanda, lendo uma revista velha com óculos torto no rosto.

— Abuelita!

Ela ergueu os olhos.

— Como foi, mijita?

— Consegui. Começo segunda-feira. É numa livraria! Vou limpar o escritório e o estoque, mas a dona disse que posso ler os livros nas pausas.

Ela abriu um sorriso. Levantou com esforço e me abraçou.

— Eu sabia que iam te aceitar. Você é boa, minha filha.

Ficamos ali, abraçadas.

Depois de uns minutos, me afastei e respirei fundo.

— Tem mais uma coisa...

Ela me olhou com atenção.

— O que foi?

— O dono aumentou o aluguel. Em duas semanas, vai subir quase metade do valor.

Não vamos conseguir manter aqui.

Eu encontrei um barraco na periferia. É pequeno, mas limpo. Fica longe da faculdade, mas... dá pra pagar.

Ela assentiu devagar. Os olhos se encheram de água. Mas não caiu uma lágrima.

— Se estivermos juntas, qualquer canto vira casa — ela disse.

Meu peito doeu.

Pelo amor.

Pela injustiça.

Pela certeza de que, mesmo lutando tanto, o mundo nunca parecia ceder pra nós.

Naquela noite, deitei no colchão, olhando o teto.

Pensando no que viria.

E, por um motivo que eu não entendi…

me veio à mente o homem do carro preto.

Aquele que me socorreu.

Que não disse seu nome.

Que me deixou ir, mas não me saiu da memória.

Na solidão da madrugada, no silêncio entre as paredes que logo deixariam de ser minhas...

pensei nele.

De novo.

Capítulos
1 Cheiro da Madeira Antiga
2 Homem do carro Preto
3 Silêncio entre Monstros
4 o nome dela era Ana
5 oque o silêncio carrega
6 Peso nenhum é leve quando se esta sozinha
7 A plaquinha torta e o Coração apertado
8 O Caçador que se recusa Atirar
9 Descansos que nao descansam
10 Linhas cortadas, caminhos cruzados
11 Silêncio antes da escolha
12 Anjo da Guarda nas Sombras
13 Entre o Cansaço e a coragem
14 Fardos que ninguem vê
15 Quando o corpo Falha, o coração grita
16 Cuidar e Doar sem ninguém ver
17 Os olhos que param de vigiar
18 Trancada no escuro
19 a linha que nunca mais rompeu
20 A calma que precede o acerto de contas
21 Um Anjo Entre As Sombras
22 Resultados que ainda nao vieram
23 Silêncio Antes da tempestade
24 pequenas Alegrias
25 para onde os caminhos me levaram
26 Silêncios que falam mais alto
27 Só aparecendo assim? Então vamos lá.
28 A isca
29 O Sangue, a Fuga e a Promessa
30 Dor e Desejo
31 Tensão e Corrente Elétrica
32 Gritos em silêncio
33 o.passado sempre volta
34 Segredos que cresce
35 Linhas Partidas
36 Sozinha no Escuro
37 Quebrada em Silêncio
38 A Mentira que Destroça
39 Dor real, mentira viva
40 gritos de ajuda
41 De Volta à Vida
42 a entrega
43 Relógio Girando
44 Guerra Declarada
45 Fim da Linha
46 agora sou eu que te salvo
47 Visita Inesperada
48 Uma Hora
49 Liberdade Dolorida
50 O Sinal
51 Dois traços
52 Maria
53 Corações em trânsito
54 Vontades, perfumes e decisões
55 Uma nova casa, uma nova vida
56 tudo em dobro
57 dor do caralho
58 nunca mais
59 Na rua, debaixo do céu
60 paz
Capítulos

Atualizado até capítulo 60

1
Cheiro da Madeira Antiga
2
Homem do carro Preto
3
Silêncio entre Monstros
4
o nome dela era Ana
5
oque o silêncio carrega
6
Peso nenhum é leve quando se esta sozinha
7
A plaquinha torta e o Coração apertado
8
O Caçador que se recusa Atirar
9
Descansos que nao descansam
10
Linhas cortadas, caminhos cruzados
11
Silêncio antes da escolha
12
Anjo da Guarda nas Sombras
13
Entre o Cansaço e a coragem
14
Fardos que ninguem vê
15
Quando o corpo Falha, o coração grita
16
Cuidar e Doar sem ninguém ver
17
Os olhos que param de vigiar
18
Trancada no escuro
19
a linha que nunca mais rompeu
20
A calma que precede o acerto de contas
21
Um Anjo Entre As Sombras
22
Resultados que ainda nao vieram
23
Silêncio Antes da tempestade
24
pequenas Alegrias
25
para onde os caminhos me levaram
26
Silêncios que falam mais alto
27
Só aparecendo assim? Então vamos lá.
28
A isca
29
O Sangue, a Fuga e a Promessa
30
Dor e Desejo
31
Tensão e Corrente Elétrica
32
Gritos em silêncio
33
o.passado sempre volta
34
Segredos que cresce
35
Linhas Partidas
36
Sozinha no Escuro
37
Quebrada em Silêncio
38
A Mentira que Destroça
39
Dor real, mentira viva
40
gritos de ajuda
41
De Volta à Vida
42
a entrega
43
Relógio Girando
44
Guerra Declarada
45
Fim da Linha
46
agora sou eu que te salvo
47
Visita Inesperada
48
Uma Hora
49
Liberdade Dolorida
50
O Sinal
51
Dois traços
52
Maria
53
Corações em trânsito
54
Vontades, perfumes e decisões
55
Uma nova casa, uma nova vida
56
tudo em dobro
57
dor do caralho
58
nunca mais
59
Na rua, debaixo do céu
60
paz

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