Fiquei três dias naquela casa escondida entre montanhas e ruínas.
Três dias em silêncio, envolta por paredes frias, luz baixa e vozes que só existiam na minha cabeça. O homem que me socorreu — Marcos — falava pouco. Respondia apenas o necessário. Não perguntava nada. Não me tocava além do mínimo.
Ele limpou meus ferimentos com precisão. Me deu comida simples e quente. Um cobertor grosso. E sumia por horas. Era como se eu estivesse sendo cuidada por uma sombra.
Eu ainda sentia dor no corpo. E o gosto amargo do pânico grudado na língua. Não chorei. Não falei. E ele respeitou. Nenhuma tentativa de aproximação, de carinho forçado, de falsa gentileza. Apenas presença. Contida, distante.
No segundo dia, o vi desmontando uma arma na sala. Cada peça colocada sobre um pano escuro, como um ritual. Ele nem se incomodou com meu olhar. E eu... também não.
Algo nele me dava medo, mas não era o mesmo medo que sentia de Santiago. O de Marcos era diferente. Era o medo de quem sabe o que é perigoso — mas também sabe reconhecer um perigo maior nos outros.
Naquela madrugada, antes do terceiro amanhecer, ele entrou na sala com uma mochila surrada. Jogou sobre o sofá, ao meu lado.
— Tem dinheiro suficiente pra pegar transporte, comer, se hospedar. Já pode ir embora.
Assenti, sem questionar. Estava fraca, mas conseguia andar. Ele não me ofereceu carona. Nem abraço. Nem um "se cuida". Apenas silêncio.
Caminhei até a saída da casa e olhei uma última vez para ele.
— Obrigada — murmurei.
Ele não respondeu. Só me encarou por dois segundos. O olhar dele era uma lâmina. Mas, por um instante, vi um tremor ali dentro. Um quase sentimento. Algo que ele engoliu rápido demais.
Eu fui embora.
Voltei pra San Luis Potosí como um vulto. Peguei carona com um caminhoneiro até a rodoviária, depois ônibus, depois uma caminhada longa até chegar em casa. Minha abuela me recebeu com um susto, um abraço, e uma chuva de perguntas que eu não sabia como responder.
— Onde você estava, mijita? Eu achei que você tava morta!
— Eu... me machuquei. Precisei de ajuda. Um estranho me ajudou.
Ela ficou me olhando. Queria dizer mais. Mas calou. Como sempre. Como eu aprendi a calar.
Naquela noite, deitada na minha cama, tudo parecia mais apertado. O colchão mais duro. O quarto mais pequeno. A cidade mais barulhenta.
Mas o que realmente me doía... era o silêncio que ele deixou em mim.
O homem do carro preto.
Não sabia nada dele. Não fazia sentido lembrar dele. Mas eu lembrava. Dos olhos que não me julgaram. Das mãos que não tocaram onde eu não queria. Do jeito como ele me enxergava… como se visse minha dor inteira, mas não quisesse roubá-la de mim.
E isso me assombrava mais do que qualquer pesadelo.
Uma semana depois, voltei à faculdade. As pessoas cochichavam. Diziam que eu tinha sumido por dias. Que talvez eu tivesse surtado. Que Santiago andava estranho.
Eu ignorei todos.
Até que ele apareceu.
No estacionamento da faculdade, num fim de tarde abafado, quando eu achava que já podia respirar em paz.
— Ana Laura!
Minha espinha gelou. Virei devagar.
Ele estava encostado num carro alugado, com roupas novas, barba feita, sorriso falso.
— Posso falar com você?
— Não.
Tentei passar direto, mas ele bloqueou meu caminho com o corpo. Ergueu as mãos, fingindo calma.
— Eu só queria pedir desculpa, tá? Eu perdi o controle aquele dia... eu tava com raiva, confuso… você me acusou do nada… eu não sou aquele cara.
— Mas é, sim — falei com firmeza. — Você disse o que disse com os dentes cerrados. Não foi confusão. Foi você. Mostrando quem é.
— Eu não quis dizer aquilo, Ana…
— Você disse que se eu quisesse transar com você e com seu pai era só ter falado. Quer mesmo me convencer de que não pensou antes de cuspir essa frase?
Ele me olhou com os olhos marejados. Teatral. Um ator péssimo.
— Eu me arrependo… Eu juro…
— Eu não quero o seu arrependimento. Quero distância.
Me afastei. Com o coração batendo rápido, mas não de medo.
Era força.
Era a certeza de que ele nunca mais teria o poder de me quebrar.
E, naquele mesmo instante, por dentro… desejei estar em silêncio de novo.
Num porão de pedra, com cheiro de pólvora.
Num sofá escuro, envolta por um casaco pesado.
Na casa de um homem que não sorria. Mas também não mentia.
Marcos.
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Atualizado até capítulo 60
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