Anéis de Família
O relógio piscava 5h45. O som agudo do alarme cortou o silêncio, mas Aurora já estava acordada antes dele. Os olhos castanho-escuros observavam o teto do apartamento pequeno e silencioso. Dormir era raro. E quando dormia… sonhava com sangue. Vozes sussurradas em italiano. Um jardim antigo com cheiro de rosas e fumaça. Sempre o mesmo símbolo: dois leões dourados segurando um anel.
Ela passava o dia tentando esquecer. Mas à noite… tudo voltava.
Levantou-se com um suspiro pesado. Caminhou até o espelho, prendendo os longos cabelos ruivos em um coque despretensioso. Seus traços eram marcantes. Queixo forte, boca carnuda, olhos de quem já viu demais — mesmo sem saber de onde.
Milão ainda dormia quando ela pegou o metrô vazio. Na clínica de estética onde trabalhava, o ambiente era de luxo e futilidade. Mulheres ricas vinham buscar juventude e beleza artificial. Aurora era a primeira a chegar, a última a sair. Sempre impecável, mas distante.
As outras recepcionistas fofocavam às suas costas: — Ela deve ter algum segredo, certeza.
— Aposto que já foi rica. Ou fugiu de algum lugar.
Aurora fingia que não ouvia. Sempre fingia. Mas a verdade é que ela também não sabia de onde vinha. Não sabia de onde herdou aquela postura altiva, aquela forma de falar italiano com tanta naturalidade mesmo sem nunca ter estudado direito. Não sabia por que sentia calafrios quando ouvia a palavra Belluci.
Naquele dia, algo estranho aconteceu.
Uma cliente nova entrou. Elegante, loira, com um vestido vinho de seda. Ela não tinha horário marcado. Pediu para falar com “a ruiva que trabalha na recepção”. Quando Aurora apareceu, a mulher apenas sorriu e disse:
— Você tem os olhos da mãe.
E saiu. Sem dizer mais nada.
Aurora congelou.
Não conseguiu trabalhar direito o resto do dia.
À noite, trocou o uniforme branco pela roupa preta de bartender. O bar estava cheio. Homens bêbados, mulheres soltas, música alta. Aurora servia com agilidade, ignorando os olhares. Mas, naquela noite, algo estava diferente. Havia um homem no canto. Terno escuro, copo intocado, e olhos fixos nela. Não olhava como os outros. Não sorria. Apenas observava.
No fim do expediente, ele desapareceu. Mas no balcão, ficou um papel dobrado com apenas uma palavra:
“Figlia.”
(Filha.)
Ela trancou o bar às pressas e caminhou rápido pelas ruas molhadas. Sentia-se observada, como se alguém caminhasse logo atrás. Quando chegou em casa, trancou a porta, fechou as janelas, e encostou as costas na parede.
— O que tá acontecendo comigo...? — sussurrou para si mesma.
Ela não sabia, mas as sombras estavam se movendo ao seu redor.
E o passado... estava chegando para buscá-la.
Aurora passou a noite inteira acordada.
Sentada no sofá velho da sala, enrolada em uma manta escura, o olhar perdido na janela. A cidade dormia, mas ela não conseguia fechar os olhos. O bilhete ainda estava ali, sobre a mesa, com a palavra “Figlia” escrita à mão em uma caligrafia elegante, firme. Ela já havia olhado o papel mil vezes, checado o verso, cheirado a tinta, analisado o traço. Nada.
“Filha.”
Filha de quem?
No dia seguinte, fingiu que estava tudo normal. Foi à clínica, sorriu para as clientes falsas, atendeu telefonemas, entregou cafés. Mas por dentro, sentia um nó apertado. A sensação de estar sendo vigiada só aumentava. O mesmo carro preto passou pela frente da clínica três vezes naquela manhã. O mesmo modelo. Os mesmos vidros escuros. Coincidência? Talvez.
Quando voltou do almoço, encontrou uma rosa vermelha sobre a mesa de recepção. Sem bilhete. Sem dono.
— Alguém deixou isso aqui? — perguntou, olhando ao redor.
As colegas deram de ombros.
— Achei que fosse de algum cliente... — disse uma, indiferente.
Aurora segurou a rosa com cautela. O perfume era forte, quase familiar. O espinho cravou levemente seu dedo. Uma gota de sangue escorreu. E de repente, flashes atravessaram sua mente:
Um homem de terno segurando uma criança no colo.
Uma mulher ruiva sorrindo em um jardim.
Um anel dourado girando lentamente no chão de pedra.
Ela se afastou da mesa, tonta. Precisou se apoiar na parede para não cair.
— Aurora, você tá bem? — alguém perguntou.
— Tô. Tô ótima — mentiu, já pegando a bolsa.
Saiu da clínica antes do fim do expediente, coisa que nunca fazia. Pegou o metrô, mas sentiu os olhos de alguém sobre si o tempo todo. Ao descer, tropeçou em um grupo de turistas, e ao se virar para pedir desculpas… o mesmo homem de terno escuro que estivera no bar dois dias antes estava parado na outra plataforma.
Imóvel. Observando.
Ela congelou. O metrô partiu, e quando olhou de novo... ele não estava mais lá.
Naquela noite, trancou todas as janelas. Acendeu apenas uma luz. Sentou-se na cama e puxou a caixinha de madeira que guardava desde os 18 anos — o único objeto que recebera no orfanato quando foi adotada. Nunca teve coragem de abrir. Estava selada com cera antiga e um símbolo estranho.
Mas agora... ela conhecia aquele símbolo.
Dois leões entrelaçados segurando um anel.
A mesma imagem que aparecia em seus pesadelos.
Seu coração começou a bater tão alto que ela ouvia no ouvido.
A respiração acelerou.
Suas mãos tremeram.
Ela pegou uma faca pequena da gaveta e, com cuidado, quebrou o selo. A caixinha fez um estalo leve. E dentro… havia apenas um papel envelhecido. E um anel.
Ela tocou no anel com cuidado. Era pesado, dourado, com o brasão dos leões gravado. O papel, ao ser desdobrado, estava manchado pelo tempo, mas ainda legível.
> "Aurora D’Angelo Bellucci.
Se um dia encontrar isso, é porque chegou a hora.
Confie no que sente.
O sangue sempre chama.
Te amamos."
As palavras flutuavam diante de seus olhos.
“Bellucci.”
Ela já tinha ouvido aquele nome. Em manchetes de jornais antigos, em boatos, em sussurros. Associado à máfia. A poder. A morte.
Ela era... uma Bellucci?
Aurora deixou o papel cair.
O mundo, como conhecia, havia acabado de ruir.
Aurora
Espero que gostem , é minha primeira obra ❤️
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Atualizado até capítulo 31
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