O conflito.

Já em casa, a comoção midiática não trouxe as respostas que Yashiro tanto ansiava, mas trouxe algo inesperado: uma carta da Escola Secundária de Shibuya. O envelope timbrado, com o brasão da instituição, parecia um vestígio de uma vida que Yuri já não reconhecia. Yashiro abriu-o com uma mistura de esperança e apreensão.

"É da escola, Yuri," ele anunciou, a voz um pouco mais suave do que o habitual, como se a formalidade da carta o tivesse acalmado momentaneamente. "Eles querem que você volte. Dizem que estão prontos para 'recepcioná-lo' e dar uma 'vida normal de estudante', com 'adaptações' para o seu... 'estado especial'."

A palavra "ele" e a frase "estado especial" caíram sobre Yuri como pedras. Ela, que até então observava o pai com uma mistura de tédio e resignação, sentiu uma onda de fúria borbulhar. A ideia de voltar para aquele lugar, onde ela era Yuri Takashi, o temido líder da Red Dragon, e agora seria... o quê? Uma aberração? Uma piada?

"Que se foda a escola!" Yuri cuspiu as palavras, a voz rouca e carregada de desprezo, uma reminiscência da antiga ferocidade que ainda habitava sua alma.

As palavras de Yuri atingiram Yashiro como um choque elétrico. O homem, já no limite da sua paciência e com a frustração da busca infrutífera pela clínica pesando sobre ele, não suportou a insolência. A figura à sua frente, embora com o rosto de seu filho, parecia uma estranha, uma criatura ingrata que cuspia na oportunidade de uma "vida normal".

Num impulso de raiva e desespero, Yashiro ergueu a mão e desferiu um bofete no rosto de Yuri. O som estalou no ar, ecoando no silêncio tenso do quarto. A cabeça de Yuri virou com o impacto, e uma mancha vermelha começou a surgir em sua bochecha.

"Você me respeite!" Yashiro bradou, a voz tremendo de fúria e mágoa, os olhos fixos na filha com uma intensidade assustadora. "Eu estou tentando salvar a sua vida, te dar uma chance, e é assim que você me agradece? Com essa boca suja?"

Yuri permaneceu imóvel, o rosto virado, a dor física misturando-se à dor emocional. O choque era avassalador. Seu pai. O homem que nunca, em toda a sua vida, havia levantado a mão contra ele, nem mesmo em seus piores momentos como líder de gangue. Aquele tapa não era apenas físico; era um golpe na última barreira de sua antiga identidade, um lembrete brutal de que o mundo, e até mesmo sua família, a via agora de uma forma completamente diferente. As lágrimas, que ela tentava reprimir com tanta força, finalmente escorreram, quentes e amargas, pelo rosto que agora era o seu.

O estalo do tapa e o grito de Yashiro ecoaram no quarto, congelando o ar. Keiko, até então imersa em sua própria dor silenciosa, ergueu-se de repente, a expressão de sofrimento dando lugar a uma raiva contida, mas igualmente feroz. Seus olhos se cravaram em Yashiro, e a voz, que antes era apenas um sussurro de lamento, agora trazia uma nova e inesperada força.

"Yashiro!" ela exclamou, a voz embargada, mas firme. "O que você pensa que está fazendo? Pare com isso! Não vê que ela é uma garota agora? Ela é nossa filha!"

Yashiro recuou um passo, atônito com a reação da esposa. A surpresa em seu rosto deu lugar a uma indignação renovada. "Filha?! Keiko, você enlouqueceu? É o nosso Yuri! Meu filho! Eu não vou aceitar essa aberração!"

"Não, Yashiro! Aceite! Não há mais volta!" Keiko retrucou, lágrimas escorrendo pelo rosto enquanto gesticulava para Yuri, que ainda mantinha a cabeça virada, as lágrimas caindo em silêncio. "Você tem que entender! Yuri está aqui, mas o corpo dele... o corpo dela é de uma garota! Você não pode tratá-la assim, não pode esperar que ela seja o que não é mais!"

Cada palavra de Keiko, embora dita em defesa, perfurou Yuri com uma dor ainda mais profunda que o tapa de Yashiro. "Ela é uma garota agora." "Não há mais volta." Era a validação mais cruel de sua nova realidade, pronunciada pela única pessoa de quem esperava uma defesa incondicional. A mãe, que deveria tê-la abraçado e dito que tudo ficaria bem, estava ali, esfregando em seu rosto a irreversibilidade de sua condição, a perda irremediável do seu antigo eu.

Uma fúria cega, ardente e selvagem, explodiu dentro de Yuri. A vergonha, a dor e a frustração acumularam-se, e o velho espírito do líder da Red Dragon, que parecia adormecido, irrompeu com uma força surpreendente. Ela ergueu a cabeça, os olhos vermelhos e selvagens, o rosto molhado de lágrimas e a bochecha ardendo.

"Vão se foder, os dois! VÃO SE FERRAR!" Yuri gritou, a voz rasgando o ar, carregada de uma dor e um ódio que chocaram tanto Yashiro quanto Keiko. O som era um misto da raiva antiga de Yuri com a angústia de sua nova e confusa existência.

Sem esperar por uma resposta, em um impulso irracional de dor e desespero, Yuri saltou da cama. Seu corpo, ainda frágil e estranho, cambaleou por um momento, mas ela se recompôs e correu. Correu para fora do quarto, atravessando o corredor em poucos passos desajeitados, e se jogou para dentro de seu próprio quarto, batendo a porta com força e girando a chave, trancando-se do mundo e daquela família que parecia não entendê-la, ou pior, não a querer mais. O silêncio que se seguiu era pesado, preenchido apenas pelo choro abafado de Keiko e pela respiração pesada de Yashiro, que encarava a porta fechada, a raiva e a impotência disputando espaço em seu peito.

O baque da porta se fechando e o som da chave girando ecoaram na casa, deixando Yashiro e Keiko em um silêncio atordoado. Keiko, com as lágrimas ainda escorrendo, foi a primeira a se mover. Ela correu até a porta do quarto de Yuri, batendo levemente, a voz embargada pela súplica.

"Yuri? Meu amor, por favor, abra a porta. Yuri, você precisa sair daí. O hospital montou um quarto de monitoramento para você aqui em casa, lembra? Você precisa voltar para lá."

Nenhuma resposta veio de dentro. Apenas o silêncio pesado, quebrado pelo choro abafado de Keiko. Yashiro se aproximou, o rosto ainda tenso, mas com um toque de arrependimento começando a surgir em seus olhos.

"Yuri, por favor, filho... vamos conversar. Eu... eu não quis..." A voz dele falhou, incapaz de completar a frase.

Lá dentro, Yuri estava encolhida no chão, as costas contra a porta trancada, as mãos cobrindo os ouvidos, tentando abafar as vozes de seus pais, mas principalmente, tentando calar a tempestade que rugia em sua própria mente. As palavras de Keiko, "ela é uma garota agora", "não há mais volta", martelavam em sua cabeça, misturadas ao estalo do tapa de Yashiro e ao seu próprio grito de fúria.

Não há mais volta.

A frase se repetia como um mantra cruel. O que seria de Yuri Takashi agora? Como ela poderia encarar o mundo? A escola, os colegas, a gangue. A imagem de seus antigos subordinados, os membros do Red Dragon, zombando dela, ou pior, não a reconhecendo, era um tormento. Ela, que sempre impôs respeito e medo, agora era... uma garota. Frágil. Vulnerável.

Eu não sou ela.

Uma parte dela se recusava a aceitar. Mas o espelho, o corpo, a sensação... tudo gritava a verdade. A fúria se misturava ao desespero, e o desespero à autocomiseração. Sua vida, a vida que ela conhecia, havia sido roubada. E não havia quem culpar, pois seus próprios pais, em um ato de desespero para salvá-lo, haviam assinado o destino dela.

"Yuri, por favor, meu amor... você está bem? Me responda!" A voz de Keiko, do outro lado da porta, era um fio tênue de esperança que Yuri não conseguia agarrar.

Yuri ignorou. Seus pensamentos eram um redemoinho de escuridão. Como ela viveria? Como uma garota? Ela não sabia ser uma garota. Ela sabia ser Yuri Takashi, o valentão, o líder. A ideia de se adaptar, de ser "normal", era um insulto. A única coisa que ela sentia era um vazio, um buraco negro onde sua antiga identidade deveria estar, e a certeza de que sua nova vida seria um inferno.

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